"Trabalhou-se todo o dia e deixando vigias, descansámos e na manhã seguinte, que se contavam sete de Agosto, ainda mal se divisava a luz quando vimos sair das águas uma mulher marinha e com tanta ligeireza entrou na terra e subiu ao monte que não tiveram todos os companheiros o gosto de a verem. Tinha todas as perfeições até à cinta que se discorrem na mais formosa e somente a desfeavam as grandes orelhas que tinha, pois lhe subiam à distância de mais de meio palmo por cima da cabeça. Da cinta para baixo toda estava coberta de escamas e os pés eram do feitio de cabra, com barbatanas pelas pernas. Tanto que se viu no monte, pressentindo ser vista, deu tais berros que estremecia a Ilha pelo retombo dos ecos e saíram tantos animais e de tão diversas castas que nos causou muito medo. Arrojou-se finalmente ao mar pela outra parte com tal ímpeto que sentimos nas águas a sua veemência. Todos se assustaram menos eu, pois já tinha visto outra no Cabo de Gué e tinha perdido o medo com outras semelhantes aparições; e me lembro que junto a Tenerife vi um homem marinho de tão horrendo feitio que parecia o mesmo Demónio. Tinha somente a aparência de homem na cara; na cabeça não tinha cabelos mas uma armação, como de carneiro, revirada com duas voltas; as orelhas eram maiores que as de um burro; a cor era parda, o nariz com quatro ventas, um só olho no meio da testa, a boca rasgada de orelha a orelha e duas ordens de dentes; as mãos como de bugio, os pés como de boi e o corpo coberto de escamas mais duras que conchas. Uma tempestade o lançou em terra e tais bramidos deu que entre eles expirou e para memória se mandou copiar a sua forma e se conserva na Casa da Cidade daquela Ilha".
Um Português, uma ilha imaginária, um naufrágio, uma visão (nada mais natural...)
O episódio, decorrido numa ilha imaginária localizada algures entre o arquipélago de Cabo Verde e a Costa da Guiné, permaneceu escondido entre os milhares de páginas dedicados à história trágico-marítima lusitana, terá sido redigido entre 1693 e 1699 pelo Mestre do navio, Francisco Corrêa, que intitulou o seu texto de Relação do Sucesso que teve o Patacho chamado Nossa Senhora da Candelária, da Ilha da Madeira, o qual vindo da Costa da Guiné, no ano de 1693, uma rigorosa tempestade o fez varar na Ilha incógnita, s.d.
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