"Há também homens marinhos, que já foram vistos sair fora d’água após os índios, e nela hão morto alguns, que andavam pescando, mas não lhes comem mais que os olhos e nariz, por onde se conhece, que não foram tubarões, porque também há muitos neste mar, que comem pernas e braços, e toda a carne.
Na capitania de S. Vicente, na era de 1564, saiu uma noite um monstro marinho à praia, o qual visto de um mancebo chamado Baltazar Ferreira, filho do capitão, se foi a ele com uma espada, e levantando-se o peixe direito como um homem sobre as barbatanas do rabo lhe deu o mancebo uma estocada pela barriga, com que o derrubou, e tornando-se a levantar com a boca aberta par o tragar lhe deu um altabaixo na cabeça, com que o atordoou, e logo acudiram alguns escravos seus, que o acabaram de matar, ficando também o mancebo desmaiado, e quase morto, depois de haver tido tanto ânimo. Era este monstruoso peixe de 15 palmos de comprido, não tinha escama senão pêlo".
Assim escrevia na Bahia, Fr. Vicente do Salvador na sua História do Brasil (1627), Livro Primeiro, Cap. Décimo.
Podemos encontrar alguns escritos adicionais sobre os ipupiaras (ou ipupyaras). Encontramos, por exemplo, um outro registo sobre homens marinhos, dado pelo jesuíta Fernão Cardim na sua narrativa Tratados da Terra e Gente do Brasil (escrita entre 1583 e 1590, mas só publicado depois de muitas aventuras na Inglaterra em 1625 na compilação marítima publicada por Samuel Purchas):
"Estes homens marinhos chamam se na língua Igpupiara; têm-lhe os naturais tão grande medo que só de cuidarem nele morrem muitos, e nenhum que o vê escapa; alguns morreram já e perguntando-lhes a causa, diziam que tinham visto este monstro; parecem-se com homens propriamente de boa estatura, mas têm os olhos muito encovados. As fêmeas parecem mulheres, têm cabelos compridos, e são formosas; acham-se estes monstros nas barras dos rios doces. Em Jagoarigipe sete ou oito léguas da Bahia se têm achado muito; no ano de oitenta e dois indo um Índio pescar, foi perseguido de um, e acolhendo-se em sua jangada o contou ao senhor; o senhor para animar o Índio quer ir ver o monstro, e estando descuidado com uma mão fora da canoa, pegou
dele, e o levou sem mais parecer, e no mesmo ano morreu outro Índio de Francisco Lourenço Caiero. Em Porto Seguro se vêem alguns, e já têm morto alguns Índios. O modo que têm para matar é: abraçam-se com a pessoa tão fortemente beijando-a e apertando-a consigo que a deixam feita toda em pedaços, ficando inteira, e como a sentem morta, dão alguns gemidos como de sentimento e, largando-a, fogem; e se levam alguns comem-lhe somente os olhos, narizes e a ponta dos dedos dos pés e das mãos e os genitais, e assim os acham de ordinário pelas praias com estas coisas menos."
Novas Terras, Novos Mares, Novas Criaturas
O Novo Mundo em nada ficava a dever ao idealizado Éden bíblico, possuía luz natural gloriosa, matas exuberantes, águas abundantes e, principalmente, uma excitante população nativa, "de corpos grandes e robustos, bem dispostos e proporcionados" (Américo Vespúcio). O fascínio provocado pelas terras americanas e pelos índios que aqui habitavam se alastrou pela Europa rapidamente, com o auxílio nada desprezível da imprensa, criada por Gutemberg em 1454. A carta Mundus Novus , de Vespúcio, conheceu, só entre 1503 e 1512 (ano da morte do autor), 13 edições latinas, dez alemãs e inúmeras outras na Itália, França e Holanda. O homem cujo nome foi dado a todo um continente (América), não poupou a propaganda: "Todas as árvores são odoríferas e produzem gomas ou óleos (...) cujas propriedades todas, se fossem conhecidas, não duvido que andaríamos todos sãos. E por certo que se o paraíso terreno existe em alguma parte da terra, creio que não deve ser longe destes países".
Logo se difundiram inúmeras fantasias. Uma das mais comuns falava da longevidade dos índios, que viveriam até 150 anos. Outra dava conta de gigantes com 16 palmos de altura e selvagens com "duas ordens de dentes em cima e em baixo" ou "pés às avessas". Os viajantes, como os franceses André Thevet (Singularidades da França Antárctica, 1558) e Jean de Léry (Viagem à Terra do Brasil, 1578), eram criativos: segundo eles, bichos que se alimentavam de ar, homens marinhos e com cabeça de cão também vagueavam pelas novas terras. As suas descrições provocaram tal polémica que a Igreja enviou um grupo de teólogos examinar a questão, como nos informam as Notícias antecedentes, curiosas e necessárias das cousas do Brasil, do padre Simão de Vasconcelos, reitor dos colégios jesuíticos da Bahia e do Rio de Janeiro (Vasconcelos publicou o seu livro em 1663, mas sem o capítulo que detalha essa investigação, que a censura eclesiástica considerou excessivo).
O Brasil, como as outras terras do maravilhoso Mundus Novus, era uma tela onde se projectava a imaginação do Velho Mundo, ainda contaminada pelos bestiários medievais.
O Regresso dos Homens Marinhos?
Já no séc. XIX, Inácio Vilhena Barbosa, no 3.º volume de As Cidades e Villas da Monarchia Portugueza que teem Brasão d'Armas (Lisboa, 1862) descreve sucintamente uma "fábula popular de antiga origem, e que tres escriptores do seculo passado ainda repetiram cheios de infantil credulidade, conta que junto áquelle penedo appareciam ás vezes homens marinhos, que viviam como peixes no seio do oceano. Um d'estes escriptores refere o caso, não só como tradição, mas tambem pelo testemunho ocular de um frade, seu conhecido, que lhe assegurou ter visto ali um d'esses monstros «com meio corpo fora d'agua, da feição de um homem muito branco, e bem figurado, o qual, olhando para todas as partes, e sacoudindo a cabeça, que tinha povoada de grandes cabellos de uma côr verde mar, se sumiu outra vez nas ondas, mergulhando-se n'ellas como o costumam fazer os nadadores".
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