sexta-feira, setembro 14, 2012

História Submersa de Portugal

 

 Dos Descobrimentos ao Fundo dos Mares


 
 
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Na famosa evocação do "Mar Português" de Fernando Pessoa (Mensagem, 1934), o poeta recorda o verdadeiro preço da expansão marítima. Três séculos antes, os episódios rocambolescos da História Trágico-Marítima (1735) [tomos I e II], a primeira grande compilação deste "triste assumpto" de "horrorosos naufrágios" e acidentes marítimos, já mostravam a face mais dramática e menos conhecida da Era dos Descobrimentos, no início da globalização das navegações de conquista e comércio.


Dois naufrágios, entre mais de uma centena, de navios da Carreira da Índia na época da Expansão.
Em cima, encalhe da nau São Paulo na ilha de Sumatra (1561) e, em baixo, nau afundada da armada de 1549.
Livro de Lisuarte de Abreu (c. 1565). The Morgan Library & Museum (antiga Pierpont Morgan Library), Nova Iorque.
A literatura portuguesa foi particularmente familiar a este tema, ou não tivesse Fernão Mendes Pinto burlado a morte 14 vezes em outros tantos naufrágios e encalhes entre o Oceano Índico e o Mar da China e Luís Camões sobrevivido a um "naufragio triste e miserando" algures na Indochina.

“... os navios que de manhã brincavam, à tarde são engolidos. Tanto a guerra como o mar equiparam-se a um homem poderoso e cruel”, lembrou o jurisconsulto e diplomata Pedro de Santarém - citando o autor romano Séneca, sobre os infortúnios do acaso -, na sua obra pioneira  dedicada aos contratos de seguro marítimo Tractatus de Assecurationibus et Sponsionibus Mercatorum (1552) publicada em Veneza (online na Biblioteca Digital, Fundação Mansutti, Milão).



 Com a passagem dos séculos, os mares percorridos pelos portugueses parecem ter não apenas engolido incontáveis embarcações, como também a memória dos seus aventurosos resgates.
 
 

O Silencioso Mundo da Penumbra Subaquática

 
Sino de mergulho concebido por Giuseppe Bono e experimentado com sucesso no rio Tejo em 1583.
Trata-se do primeiro engenho de mergulho conhecido em Portugal.
Archivo General de Indias (Sevilha)
A primeira experiência de que há conhecimento em Portugal ocorreu em Lisboa sob o reinado de D. Filipe I (Filipe II de Espanha) no ano de 1582 e foi protagonizada pelo fidalgo siciliano Giuseppe Bono (naturalizado espanhol sob o nome de José Bono), oriundo de Palermo.

Este curioso personagem esteve envolvido no comércio de coral no Mediterrâneo italiano, no início da década de 1570, foi autor de diversas propostas de engenhos bélicos como “carros de guerra” e peças de artilharia de sua invenção ao serviço dos Grão-Duques da Toscana Cosimo I e Francisco I de Médici (resumo de alguns destes documentos do Arquivo Médici aqui e aqui). Revelou-se um hábil fundidor versado na construção de armas e explosivos, o que lhe garantiu a nomeação de comissário-geral para o armamento da Toscana. Reconhecido como “fabricante de armas”, era no entanto apontado como “astutísimo, bom falador e faz profissão de saber coisas raras” e não faltou quem lhe atribuísse pretensiosismo descabido quanto às suas propostas de engenhos bélicos quando mais tarde entrou ao serviço de Filipe II de Espanha em 1580 (Archivio Mediceo del Principato, Florença).

Justamente nesse ano, concluída a conquista de Portugal (1580), Bono viajou para Lisboa acompanhado de 8 carruagens transportando protótipos de “engenhos” e máquinas na expectativa de aliciar o monarca espanhol para a sua utilização. Já na capital portuguesa, onde foi agraciado pelos seus fogos de artifício espectaculares quando da entrada triunfal de D. Filipe I (Filipe II de Espanha), a experiência foi de facto organizada e o seu resultado prático foi amplamente satisfatório.

O sino construído em madeira de sua autoria, originalmente concebido em 1570 e testado com sucesso em águas mediterrânicas, valeu-lhe o privilégio exclusivo de utilização por 10 anos no Estado de Florença concedido pelo Grão-Duque. O“engenho” serviu os mergulhadores na pesca do coral praticada nas costas do Grão-Ducado, no Mar Tirreno.

A validade do sino de madeira destinado à recuperação de cargas preciosas afundadas no Novo Mundo, agora com um novo modelo de base octagonal, foi novamente testada em imersões sucessivas no rio Tejo sob o olhar das autoridades régias no ano de 1582. Dois mergulhadores permaneceram no interior do sino, devidamente calafetado e equilibrado com lastro, durante pouco mais de um quarto de hora, conseguindo-se com o seu trabalho retirar algumas âncoras do leito do rio.


Reconstituição do sino de Giuseppe Bono utilizado em 1583 no Tejo próximo a Lisboa, na primeira experiência com este engenho subaquático de que há registo em Portugal
(artigo de Alessandro dell'Aira (2000) citado na bibliografia mais abaixo)

Este sino possuía uma novidade de especial utilidade prática: no seu interior tinha-se colocado um pequeno tambor com manivela para que os mergulhadores controlassem a subida e descida através do cabo que o ligava à superfície.

O êxito obtido com a experiência deste novo sino de mergulho em Lisboa representou para o engenheiro um cobiçado privilégio real emitido em Fevereiro desse ano para emprego do mesmo no resgate de cargas preciosas e quaisquer objectos afundados na costa atlântica.

Mas Bono não se deu por satisfeito, pois o seu objectivo eram as Índias Ocidentais, onde se acumulavam naufrágios espanhóis com espólios de valor incalculável, cuja recuperação ambicionava. Para o efeito, concebeu e experimentou na presença do Vice-Rei de Portugal um novo sino em bronze. Porém, o regresso do rei a Madrid e a prolongada demora na resposta dos conselheiros significaram para o inventor um ponto final nas suas pretensões, regressando também ele a Espanha. Em 1584 a Junta de la Contaduría Mayor recomendou a concessão da licença solicitada para passar ao Novo Mundo e aí desenvolver o seu "engenho" com privilégio por dez anos, a troco da décima parte dos seus achados reverter para a Coroa. 
 
 O sino conhecia aqui o início do seu uso para fins comerciais, por serviços contratados entre particulares e a Coroa. Não apenas na "pesca" de naufrágios e resgate de cargas valiosas, mas também nas preciosas pescarias de pérolas.

Inexplicavelmente, as crónicas da época são omissas quanto a este episódio pioneiro em Portugal. Apenas a documentação dos arquivos da Casa de Habsburgo em Espanha nos desvelam um pouco da experiência fascinante. Mais uma vez, uma inovação tecnológica ensaiada em território português ficou sepultada nos arquivos. A tentativa seguinte, da qual não há sequer indícios de ter chegado à prática,apenas surgiu no séulo seguinte.

Sino de mergulho para dragar o leito assoreado da desembocadura do rio Tejo.
“Discurso de Leonardo Turriano sobre limpiar la barra del Taxo (…)”, s.d. [pós-1608]. Biblioteca Nacional de Portugal.

Outro sino de mergulho, também para utilização no leito do rio, provavelmente inspirado naqueles construídos pelo italiano Bono na década de 1580 em Lisboa, data dos primórdios do século seguinte, perto de 1608, pela mão do engenheiro-mor do reino Leonardo Turriano (nascido em Cremona, na Lombardia, entrado ao serviço de Filipe II em 1583, radicado em Portugal na década de 1590, nomeado engenheiro-mor do reino e aqui falecido em 1629).
 
Turriano foi um talentoso técnico especializado em estruturas hidráulicas e arquitectura militar. Oriundo da Corte do imperador Rodolfo II de Áustria, contam-se no seu vasto currículo na Península Ibérica, entre outros, a “Descrittione et Historia del regno de l’Isole Canarie giá Dette Fortunate com il parere delle loro fortificationi” (1592) (tradução setecentista na Biblioteca Nacional de Portugal). Entre as suas obras mais conhecidas avultam os estudos para o abastecimento de água da cidade de Lisboa, a direcção da construção da fortaleza de Viana do Castelo, servindo também como um dos responsáveis pela construção do forte de São Lourenço da Cabeça Seca (Bugio) na barra do Tejo e responsável técnico pela modernização da fábrica da Barcarena.
 
Turriano incluiu no seu tratado manuscrito conservado na Biblioteca Nacional de Portugal [Cód. 12892, “Discurso de Leonardo Turriano sobre limpiar la barra del Taxo (...)”, s.d. (pós-1608)] uma embarcação equipada com um braço de madeira à ré por onde corria o cabo de suporte a um cabrestante para manobra de um sino de mergulho de grandes dimensões capaz de albergar 4 homens, com espaço suficiente para guardar as respectivas provisões e apetrechos, sendo o todo lastrado com um aro de chumbo ao seu redor. O dispositivo funcionaria como complemento de outros trabalhos de dragagem no estuário do Tejo, atingido por fortes assoreamentos desde o final de Quinhentos. O sino de Turriano possuía o pormenor original de poder apoiar-se no leito do rio sobre 3 pé articulados. Contudo, a descrição também aqui é muito sumária pois, de acordo com o autor, as suas características já se encontravam descritas num outro manuscrito seu, um “Discurso sobre a ponte de Coimbra” hoje perdido.  


Alguns exemplos de dispositivos de dragagem do rio Tejo propostos por Leonardo Turriano no seu "Discurso" manuscrito onde também se inclui o modelo de sino para trabalhos fluviais apresentado mais acima. Biblioteca Nacional de Portugal.
Estes foram, tanto quanto é possível saber, os primeiros sinos de mergulho concebidos ou construídos e utilizados em Portugal. Não obstante, os sinos estão ausentes dos relatos das navegações nas principais rotas oceânicas da Coroa portuguesa. Antes pelo contrário, surgem sucessivamente no plano mais teórico, sem que se conheça qualquer utilização prática após o final do século XVI.
 
Constata-se, ainda assim, a continuidade da sua proveniência estrangeira, dado que os três primeiros proponentes foram todos técnicos ou científicos italianos numa época em que a cultura dos tratados técnicos e militares era dominada pela miríade de potências da Península Itálica do Risorgimento - o Renascimento - de que foram principais expoentes Taccola, Giorgio Martini e Leonardo da Vinci.

O personagem seguinte na breve saga dos sinos foi o Jesuíta Giovanni Paolo Lembo. Natural de Nápoles, mas residente em Lisboa, foi um eminente professor de matemáticas na prestigiada Aula da Esfera (principal instituição de ensino e de prática científica em Portugal,durante quase dois séculos) do afamado Colégio de Santo Antão em Lisboa (cujo edifício original se encontra no local do actual Hospital de São José) entre 1615 e 1617. Ainda hoje quase desconhecido entre nós, Lembo trouxe, em 1615, apenas cinco anos após a primeira demonstração da teoria heliocêntrica de Galileu (de quem foi amigo pessoal), os ensinamentos revolucionários para a Aula da Esfera.





Fotos do antigo local de ensino científico do Colégio de Santo Antão aqui
A secção dos Manuscritos da Livraria da Torre do Tombo, guarda um raro compêndio de cosmografia, datável de circa 1616, de sua autoria. Trata-se do primeiro manuscrito que menciona telescópios e observação com telescópios em Portugal. Um bom exemplo do intercâmbio de Lisboa com os mais avançados centros científicos da Europa, sendo o Colégio porta de entrada em Portugal dos mais importantes descobrimentos da nova ciência.

Uma parte do compêndio inédito de Lembo intitula-se "Tractado breve das Machinas Hydraulicas" e contém um desenho até agora desconhecido de um dos primeiros sinos de mergulho descritos em território português. O alvo da atenção do erudito autor é múltiplo: efeitos cénicos destinados a ocasiões de recreio, mas também a casos práticos, do foro militar.

A curiosidade anfíbia é novidade, não num autor italiano como Lembo, mas no local onde descreveu as mesmas, em Lisboa. Assim, o Capítulo 1.º, “De que maneira poderá alguém passar os rios, sen embarcaçoins; ainda pellejando”, apresenta um outro desenho que tem passado despercebido, de uma bóia militar [“cingulo militar”; cíngulo provém de cingulum, (Rafael Bluteau, Vocabulario Portuguez e Latino, 1712), cinto sacerdotal, mas também cinturão militar dos legionários romanos (alguns exemplos aqui)], como recurso para o soldado sofisticado envolvido em operações anfíbias, servindo-se de uma espécie de híbrido de colete de flutuação/bóia individual, para atravessar os rios.
 
Ilustração do "cingulo militar" no compêndio do professor Jesuíta Giovanni Paolo Lembo, "Tractado breve das Machinas Hydraulicas", c. 1616.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa)
 O "cingulo", ou bóia de uso militar, constitui, na verdade, de um tipo de dispositivo anfíbio recorrente nos cadernos de inventores e em manuais de máquinas desde o final da Idade Média.


Bóia militar, ou centura per militi. Giovan Battista della Valle (1521)
 
Em 1568 o alquimista e cartógrafo Girolamo Ruscelli incluiu na sua obra póstuma Precetti della militia moderna, tanto per mare, quanto per terra um modelo de cinto flutuador, citando o protótipo original de Mestre Leonardo da Vinci que este lhe terá mostrado.
 

O sucesso das invenções e engenhos de Ruscelli (pseudónimo de Alessio Piemontese) alcançou o século seguinte e na edição alemã (Kriegs und Archeley Kunst, 1620), o mesmo cinto de flutuação foi novamente representado num conjunto de gravuras da autoria de Jakob de Zetter reunindo equipamentos de mergulho de diversos autores quinhentistas - entre eles, a bóia e a máscara com tubo de respiração de Battista della Valle, este último semelhante ao de Leonardo da Vinci. Também se incui uma jangada salva-vidas que Ruscelli propôs para equipar os navios.
A moda não desapareceu e foi apresentada recorrentemente por militares inventores nas décadas e séculos posteriores.

"Inbencion de passar el agua" do matemático da Corte de Espanha Miguel Florencia van Langren (1634).
Archivo General de Simancas (Valladolid)
 
Modelo tardio de bóia militar, incluindo umas "sofisticadas" aletas ou barbatanas metálicas.
Franz Kessler, Sonderbahre und bißher verborgen-gewesene Geheime Künste (1722).
Biblioteca da Universidade Martin Luther, de Halle-Wittenberg (Saxónia-Anhalt, Alemanha).
 
Todas estas propostas culminaram na experiência bem sucedida do Padre matemático Jean-Baptiste de la Chapelle no rio Sena em 1765. O conceito foi ampliado e desenvolvido sob a forma de um fato de flutuação em cortiça no seu Traité de la construction théorique et pratique du scaphandre, ou du bateau de l’homme publicado em 1775. Embora a invenção não tenha ulteriormente vingado, permaneceu o nome do escafandro - literalmente "barco do homem".
 
Escafandro de Jean-Baptiste de la Chapelle (1775).
Via e-rara (ETH Bibliothek, Swiss Federal Institute of Technology, Zürich)
Mas, regressando ao manuscrito inédito do Jesuíta italiano em Lisboa, o Capítulo 2.º do seu compêndio é único na sua exposição de “Como se poderá hir ao fundo de qualquer agoa sem se molhar”. Como recorda Lembo: "Já se fez disto experiençia diante de Carlos 5.º em Toledo por dous gregos que o fizerão estando à vista muitos mil homens”. Refere-se à experiência ocorrida em Toledo no ano de 1538 na presença do imperador Carlos V, que referimos no post anterior e que terá sido a primeira em toda a Península Ibérica. 


Desenho esquemático de sino de mergulho no compêndio do professor Jesuíta Giovanni Paolo Lembo, "Tractado breve das Machinas Hydraulicas", c. 1616.Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa)
Deste modo, a influência dos livros de “máquinas” italianos, numa forte tradição originada em Quatrocentos, aqui manifesta. deixou-nos uma das mais antigas referências em português a um sino de mergulho.

Fora da realidade fugidia dos sinos de mergulho, escassísimas referências mais difusas a experiências subaquáticas ocorreram na época moderna. Datam aproximadamente do segundo quartel do século XVI os primeiros relatos conhecidos em Portugal.

O documento mais antigo referente a tais experiências põe em destaque um João Roiz - embora não datada, outros elmentos indiciam seguramente ter sido redigida no segundo quartel do séc. XVI. Nela se mencionam uma série de “engenhos” para merecer a atenção e o dinheiro régios, das quais se destaca pela sua singularidade um equipamento específico para exploração do meio subaquático.
De acordo com o documento anónimo, aparentemente redigido por uma outra pessoa, Roiz terá dito “que muitas vezes acontece em porto de mar ou de rio cair alguma cousa em que as vezes se perde muita fazenda e por falta de nom poderem andar debaixo d’agoa se perde muita cousa”. Para corrigir esta situação, João Roiz pretendia proceder a uma experiência, fazendo com que “vá hum homem abaixo a ter(r)a (sic) e estê lá espaço que pos(s)a fazer o que for neces(s)ário”.

As novidades prosseguem neste documento de raro interesse, pois ficamos a saber de uma proposta anterior no mesmo sentido que não surtiu efeito. Esta indicação sugere que aquele ensaio consistiria na tentativa de travessia subaquática do estuário do Tejo entre a povoação de Alcochete, de onde era natural o proponente, e a cidade de Lisboa. Por isso, Roiz previne o rei contra o cepticismo previsível provocado por esse prévio fracasso: “Acerqua disto dirã(o) a Vossa Alteza que será isto como foy ho homem d’Alcouchete (sic) que dis(s)e que avia de vir por baixo d’agoa a Lixboa digo que isto que eu dito tenho se pode fazer e se faz em algumas partes fora destes Regnos e acerqua deste engenho creyo que darey outro milhor que ho que eu vy e que o que se usa fora daquy eu ho direy a Vossa Alteza e creya Vossa Alteza o que digo poder ser asy que em estas cousas posso servir a Vossa Alteza se dellas se quiser servir (...)”. [a carta de proposta encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Cartas Missivas, e foi publicada por Sousa Viterbo, Inventores Portuguezes (Coimbra, 1902)]

Este documento alude a uma versatilidade tipicamente renascentista de conhecimentos no campo bélico e náutico, pois as suas propostas ao rei incluem “engenhos” para fundir artilharia “por menos preço e menos metal” e avaliação da qualidade da pólvora produzida. Percebe-se que Roiz estivera previamente envolvido na produção de artilharia e noutras iniciativas afins em Inglaterra ao serviço de Henrique VIII. Apresentou também um novo sistema hidráulico a bordo dos navios da Carreira da Índia concebida para optimizar, duplicando, o rendimento das bombas dos navios aperfeiçoando modelos anteriores.
 
Porém, tal como sucedeu a tantos outros empreendedores subaquáticos, o rasto de Roiz e das suas propostas submarinas perdeu-se no agitado século de Ouro das navegações portuguesas. 
 
A travessia do “homem de Alcochete” e o “engenho” de João Roiz para resgate de objectos submersos mostram-se aqui como as primeiras referências expressamente alusivas a propostas de mergulho com recurso a equipamentos especialmente concebidos para o meio subaquático de que há conhecimento em Portugal.
Porém, se é certo que Roiz solicitou o uso exclusivo na utilização dos seus “engenhos” (provavelmente variantes do sino de mergulho), desconhece-se a existência da respectiva resposta régia, se bem que na ausência de qualquer referência ao emprego de tais inventos na costa portuguesa no reinado em que foi proposto (D. João III), se possa sugerir que não terão surtido efeito.

O navio de guerra Mary Rose, jóia da armada de Henrique VIII, retratado pouco antes do seu trágico afundamento. "Anthony Roll" (1546)
Se a experiência de João Roiz teve efectivamente lugar supomos que terá sido realizada muito provavelmente utilizando um sino de mergulho, cuja utilização moderna se iniciou ainda no séc. XVI. Sendo certo que, por um lado Roiz invoca ter servido um rei inglês, e por outro, justamente no reinado de Henrique VIII vários mergulhadores venezianos trabalharam em Inglaterra na tentativa de resgate do navio de guerra da Coroa inglesa Mary Rose afundado em 1545, poderá ter sido com estes que o português aprendeu a “vir por baixo d’agoa”. De facto, as derradeiras notícias relativas ao salvamento deste célebre navio ainda em meados de Quinhentos mencionam a artilharia recuperada entre 1545 e 1549 sobretudo pelo mergulhador Piero Paolo, natural de Veneza.
 
 
Detalhe do afundamento do Mary Rose perto de Portsmouth na gravura de Cowdray, 1778 (cópia de original quinhentista desaparecido).
Poderá ainda ter havido outro eventual elemento de ligação com o mundo português. Num episódio digno de Shakespeare, sabe-se que um escravo guineense ao serviço de um mercador italiano em Londres, de seu nome de baptismo Jacques Francis, foi nada mais que um dos principais mergulhadores da numerosa equipa de resgate subaquático reunida para tentar salvar o Mary Rose. Graças ao depoimento que o mesmo prestou perante o Alto Tribunal do Almirantado inglês foi possível reconstituir alguns pormenores deste percurso singular ainda hoje surpreendente (veja-se a interessante narrativa deste episódio num estudo recente, a pp. 255-271).
 
O caso do mergulhador africano em águas europeias foi um dos primeiros de uma longa história de actividade subaquática por parte de escravos negros , que se estendeu entre a América, as Caraíbas e África entre os séculos XVI, XVII e XVIII.


Desenho de um artista francês Protestante que acompanhou Sir Francis Drake às Caraíbas e América Central no final do século XVI. ilustrando a pesca de pérolas na ilha de Margarita, ao largo da Venezuela, por escravos mergulhadores. “Canau pour Pecher les Perles” (canoa para pesca de pérolas). Histoire Naturelle des Indes, c. 1586.
The Morgan Library & Museum, Nova Iorque
A etapa tropical dos engenhos de mergulho obteve especial atenção do capitão Simão Estácio da Silveira, lisboeta na época dos reis Filipes. Tal como Giuseppe Bono, o português Estácio da Silveira percebeu o vasto "nicho de mercado" constituído pela pescaria de pérolas e resgates subaquáticos. Não por acaso, ambos dirigiram as suas propostas de utilização de engenhos na época da União Ibérica, visando tanto a exploração de recursos naturais como a navegação perdida na época das grandes frotas da prata e ouro sul-americanas.
  
Na verdade, a exploração comercial subaquática do capitão integrava-se na sua ambiciosa visão para as terras brasileiras. Nas suas duas obras de divulgação Intentos da Jornada do Pará (1618) [reeditada in Annaes da Bibliotheca Nacional, Rio de Janeiro, vol. 26 (1904), pp. 361-366; PDF] e Relação sumária das cousas do Maranhão (1624) [edição fac-similada, separata de Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, vol. 94 (1974), pp. 104-127 e texto transcrito no Boletim do Instituto Histórico, Geográfico e Antroplógico do Ceará (1905)], o capitão faz a propaganda preparando o terreno para uma desejada vaga de emigração lusitana. Estácio da Silveira foi um dos primeiros exploradores do Amazonas (liderou a primeira expedição de colonização da "Conquista do Maranhão" em 1619, no mesmo ano em que foi empossado primeiro presidente do Senado da Câmara de São Luís).   Em ambos as suas publicações descreve a variedade de recursos naturais indispensáveis à prosperidade dos futuros colonos. A obra Intentos da Jornada do Pará (1618)  foi "Dirigida aos pobres do Reino de Portugal", concluindo categoricamente: "Eu me resolvo que esta é a melhor terra do mundo, onde os naturais são muito fortes e vivem muitos anos, e consta-nos que, das que correram os portugueses, a melhor é o Brasil e o Maranhão é Brasil melhor, e mais perto de Portugal que todos os outros portos daquele estado, em derrota muito fácil à navegação donde se há de ir em vinte dias ordinariamente".

Ardente defensor do potencial económico das terras do Nordeste brasileiro, Estácio da Silveira tornou-se Procurador-geral da Conquista do Maranhão e, em 1626, sugeriu que os rios maranhenses poderiam reduzir para quatro meses a duração da viagem entre o Peru e a Espanha, que demorava até dez meses, evitando nesse percurso ventos contrários, correntes marinhas e ataques corsários que atrasavam os navios do ouro e da prata. O Rio Amazonas funcionaria como corredor de ligação entre o Atlântico e o Mar do Caribe.


São Luis do Maranhão. Mapa de João Teixeira Albernaz, "Pequeno atlas do Maranhão e Grão-Pará" (1629).
Arquivo digital da Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro)
Mas a verdadeira novidade prática emanada do capitão visionário prende-se com a primeira notícia segura de acordo contratual de um súbdito português para recuperações subaquáticas. Foi em 1628 que a Coroa de Espanha firmou um contrato com Estácio da Silveira, para que este procedesse à recuperação de metais preciosos e artilharia afundados. Neste seu contrato, Silveira beneficiou da atribuição de nada menos que 50% do valor total dos objectos recolhidos, atingindo uma fatia generosa de 68% no primeiro ano de serviço. Esta singularidade fez de Silveira o particular mais bem pago na sua actividade ao serviço dos reis espanhóis durante a primeira metade do séc. XVII, de entre o conjunto de 6 contratadores de resgates subaquáticos que serviram a Coroa de Espanha entre 1604 e 1650.

Alguns, raríssimos, exemplares do contrato de Estácio da Silveira (Asiento que de mandado de S. M. se tomó por el Señor Marqués de Leganés, del Consejo de Estado de S. M., su Gentilhombre de la Cámara, Presidente de Flandes y General de la Artillería de España, con el Capitán Simón Estacio de Silveira, sobre sacar del fondo del agua artillería, oro, plata, cobre y otras cosas... Madrid, 17 noviembre 1628) guardam-se hoje em Espanha, esquecidos pela historiografia dos reis de Habsburgo. (Biblioteca Nacional de España e na Colecção Navarrete, no Arquivo do Museu Naval de Madrid )


Mas foi necessário chegar o século XVIII para surgir o maior protagonista de todos os exploradores do mundo subaquático até à época contemporânea, John Lethbridge.

Este improvável mercador de lã, natural de uma discreta vila do Sul de Inglaterra, viu uma oportunidade de negócio no mundo dos resgates subaquáticos através de uma audaciosa inovação. O seu engenho de mergulho, conhecida simplesmente por "diving machine" ou popularmente por barril de mergulho, consistia numa estrutura cilíndrica estanque em madeira que dispunha de uma pequena escotilha. Deitado face ao fundo marinho, o operador podia executar manobras de pequena amplitude com os braços, que saíam através de vedantes em cabedal, para fixação de cabos e âncoras aos bens recuperáveis. Lethbridge garantiu assim uma maior protecção ao mergulhador, num híbrido entre o sino primordial e o escafandro que apenas surgiria com a Revolução Industrial. Do primeiro, porém, mantinha a estrita dependência na reduzida capacidade de ar respirável e do segundo antecipou a manobrabilidade de um equipamento individual com capacidade de visão e manipulação de objectos.

O barril de mergulho era operado a partir da superfície suspenso por um cabo ou corrente, capaz de atingir os 22 metros de profundidade. Mas a posição desconfortável em que se encontrava o operador revelou-se debilitante em imersões sucessivas, confinado numa estrutura reduzida que possuía à justa as dimensões suficientes para uma pessoa. A autonomia também não ultrapassava a meia hora, antes do ar se tornar irrespirável. 

Ainda assim, este “engenho” provou a sua eficácia nas diversas operações em que foi utilizado, entre as quais se celebrizou, na década de 1720, a recuperação de mais de 33 toneladas de metal precioso em apenas 6 meses de trabalho num navio holandês afundado na ilha de Maio, em Cabo Verde. A carta patente outorgada pela Coroa britânica permitiu a Rowe “pescar em naufrágios” na recolha de tesouros e canhões afundados nas Caraíbas e na Escócia até meados do séc. XVIII.

Foi em 1715 que Lethbridge apresentou a primeira versão da sua "máquina de mergulho", utilizada com bastante sucesso desde o Oceano Atlântico ao Oceano Índico. Lethbridge utilizou o seu “barril” para o salvamento dos aprestos, artilharia e carga preciosa do naufrágio de diversos navios da Companhia das Índias Orientais holandesa. Este“engenho” de provas dadas foi utilizado em seguida por outros mergulhadores mas não conheceu vida longa, desaparecendo no final de Setecentos.

O sucesso - e o equipamento - foi partilhado pelo seu sócio e conterrâneo, Jacob Rowe que também se aventurou nos resgates subaquáticos com algum sucesso na mesma época.

O barril de Lethbridge, reconstituído por Sténuit na década de 1970, foi por este experimentado sem grande sucesso.
 

Reconstituição do barril de mergulho de John Lethbridge. Museu Newton-Abbott, Devon (Inglaterra) 
 
Mas foi no arquipélago da Madeira que a inovadora“diving machine” ganhou notoriedade. O seu alvo: um naufrágio particularmente valioso, um autêntico navio do tesouro.


O navio Slot ter Hooge, retratado por Engel Hoogerheyden.
Foi em 19 de Novembro de 1724 que o navio Slot ter Hooge, da Companhia Holandesa das Índias Orientais - Vereenigde Oostindische Compagnie, regressado de Batavia, na actual Indonésia, com destino a Amesterdão, naufragou na ilha do Porto Santo, no arquipélago da Madeira. Em poucos minutos o navio desapareceu na a enseada do Porto do Guilherme. Dos 254 passageiros a bordo, apenas 33 se salvaram.
 
Baía de Porto do Guilherme, ilha de Porto Santo, local do naufrágio do Slot ter Hooge em 1724.
(Foto: Bill Curtsinger, National Geographic Society)

Ilustrações a partir de gravuras numa caneca gravada, contemporânea de Lethbridge, com mapa do sítio de naufrágio e o barril de mergulho utilizado nos resgates subaquáticos.

Interpretação do resgate de Lethbridge na ilha do Porto Santo em 1724.
(Desenho de Pierre Mion, National Geographic Society)

Recuperação de um canhão de bronze do naufrágio do Slot ter Hooge na Baía do Guilherme, Porto Santo, em 1974.
(Foto: Bill Curtsinger, National Geographic Society)
Entre 1725 e 1733, Lethbridge foi contratado pelo cônsul holandês em Lisboa, recuperou muitas centenas de barras de prata e dois canhões. mais de metade do tesouro

A história do naufrágio conheceu o derradeiro capítulo apenas no século XX. Em 1974, aproveitando o caos pós-revolucionário em Portugal, o caçador de tesouro Robert Sténuit mergulhou no Porto Santo e recuperou bastantes peças do naufrágio num resgate muitio polémico. A maior parte do espólio terá saído clandestinamente da região. Alertado, o Governo português confiscou várias barras de prata, instrumentos de navegação, fragmentos de cerâmica, material cirúrgico de bordo e outros objectos utilitários da vida a bordo. Porém, Sténuit recorreu  ao Tribunal Internacional de Haia, no sentido de recuperar o material confiscado. Tendo em conta que a Holanda tinha transferido para o seu Governo todos os direitos da extinta Companhia Holandesa das Índias Orientais, os Países-Baixos viram validado o contrato celebrado com Robert Sténuit, em que este se comprometia a ceder ao Governo holandês 25% do valor recuperado.

Uma pequena parte do espólio do Sloot ter Hooge recuperado em 1974 permaneceu na Casa Colombo – Museu de Porto Santo. Retomados alguns mergulhos na década de 1980, foram recuperados mais artefactos, hoje conservados na ala de reservas do Museu Quinta das Cruzes, no Funchal.

Várias peças recuperadas também se conservaram no Museu Newton-Abbott, no Devon, e ainda na Casa da Moeda holandesa.

Muitas barras e moedas de prata, porém, continuam a ser vendidas ainda hoje em leilões ocasionais.

O incidente de Porto Santo, em 1974, revelou-se fundamental para a proibição posterior de outras actividades de caça ao tesouro nos mares portugueses.
 


Lingotes de prata recuperados em 1974 no naufrágio do Slot ter Hooge. Casa da Moeda da Holanda.

Parte do espólio recuperado pelo mergulhador belga Robert Sténuit em 1974. National Geographic Society.
A memória dos engenhos e máquinas de mergulho, essa, continua tão arredada da vista como os naufrágios escondidos pelos sete mares.


Modelo de sino de mergulho (séc. XVIII-XIX?).
Museu de Física da Universidade de Coimbra

 
Para saber mais:
 
Alessandro dell’AIRA, “Un pionere dell’arte subacquea: mastro Giuseppe Bono da Palermo” [artigo original de 2000 em PDF; e versão de 2001 in The Historical Diving Society - Italia: Notizie, n.º 21, também em PDF]

Kevin DAWSON, "Enslaved Swimmers and Divers in the Atlantic World", in The Journal of American History, 92 (4) (2006)

Gianlucca MINGUZZI, "Lethbridge & Rowe e la loro macchina da immersione (seconda parte)", in The Historical Diving Society - Italia: Notizie, n.º 39 (2007)  [PDF]

Rafael MOREIRA, “As máquinas fantásticas de Leonardo Turriano: a tecnologia do Renascimento na barra do Tejo”, in Nossa Senhora dos Mártires: a última viagem, Pavilhão de Portugal-Expo 98 (Lisboa, 1998), pp. 51-67. [com excertos do “Discurso de Leonardo Turriano sobre limpiar la barra del Taxo (…)”, s.d. (pós-1608)]

Gustav UNGERER, “Recovering a Black African’s Voice in an English Lawsuit: Jacques Francis and the Salvage Operations of the Mary Rose and the Sancta Maria and Sanctus Edwardus, 1545-ca.1550”, in Susan John PITCHER and S. P. CERASANO (ed.), Medieval and Renaissance Drama in England, vol. 17 (2005), pp. 255-271.

João Pedro VAZ, Pesca de Naufrágios: as recuperações marítimas e subaquáticas na época da Expansão (2006)