quarta-feira, outubro 03, 2012

A Curiosa Carreira Portuguesa do Pai do Submarino Alemão


Detalhe da Panorâmica de Lisboa por Bernardo de Paula, primeiro-tenente da Companhia de Mineiros e Sapadores do Regimento de Artilharia de Lagos, 1763.
Com dedicatória ao "Conde Reynante de Schaumbourg Lippe marechal general dos exercitos de Sua Majestade Fidelissima". Biblioteca Nacional de Portugal

Guerra e Tecnologia: o Conde de Lippe em Portugal


Um dos resultados do conturbado período entre o grande terremoto de 1755, as negociações para nova delimitação do Brasil colonial no conflito com Espanha concluído no Tratado de Madrid de 1750 e a iminência de uma nova invasão espanhola em 1762, foi a chegada neste ano a Portugal de uma pequena elite de oficiais militares alemães. Competia-lhes modernizar e profissionalizar as forças militares do reino, no vasto conjunto de reformas projectadas pelo poderoso ministro Marquês de Pombal.

Marquês de Pombal, por Claude Joseph Vernet e Louis Van Loo, 1767 (Câmara Municipal de Oeiras)
Perante a ameaça do envolvimento português na Guerra dos Sete Anos europeia - que resultou na breve Guerra Fantástica concluída no âmbito do Tratado de Paris (1763) -, a Inglaterra respondeu ao pedido de ajuda do velho aliado com o envio de Guilherme Schaumburg-Lippe, conde reinante do pequeno condado Schaumburg-Lippe, na Baixa Saxónia. Embora alemão de nascimento, o famoso conde de Lippe - tal como ficou conhecido em Portugal - era membro da família real inglesa gozava de elevada reputação militar como estratega e especialista nas manobras de artilharia, sendo versado em Matemática, Ciências Políticas, História, Filosofia. O conde participou com o seu Regimento particular nos exércitos anglo-prussianos da Guerra dos Sete Anos e distinguiu-se como General do Estado de Hannover na batalha de Minden (1759), obtendo o comando de toda a artilharia anglo-prussiana.

Wilhelm zu Schaumburg-Lippe, conde de Lippe.
Retratado por Anton Wilhelm Strack, a partir do original de Johann Georg Ziesenis, circa 1782 (Museu Gleimhaus Halberstadt, Saxónia-Anhalt)


Conde de Lippe, por Johann Georg Ziesenis, circa 1770.
Palácio de Bückeburg (Schloss Bückeburg).
O conde de Lippe chegou a Portugal em 1762 acompanhado por vários oficiais alemães, entre os quais o príncipe Carlos Luiz Frederico II, Duque de MecklenburgTenente-general do Exército Português, irmão da rainha de Inglaterra, futuro Governador de Hannover e Marechal de campo do exército inglês. O Conde de Lippe assumiu o comando do Exército Português com a patente de Mestre-de-Campo-General para comandar as tropas portuguesas que, com ajuda de forças britânicas, se preparavam para defender o reino.

Forte de Nossa Senhora da Graça ou de Lippe, edificado entre 1763 e 1792.
A sua marca mais duradoura foi a edificação do inovador forte de Nossa Senhora da Graça próximo de Elvas, que o rei D. José rebaptizou em sua honra o forte de Lippe. O modelo utilizado baseou-se na fortaleza de Wilhelmstein no lago de Steinhude, propriedade do conde. Após o final da Guerra Fantástica com Espanha, e o seu regresso à Alemanha, a Coroa de Ingletarra promoveu-o a Marechal pelos serviços prestados no comando das forças luso-inglesas.

Palácio de Bückeburg, Baixa Saxónia, residência dos Príncipes de Schaumburg-Lippe.
Grande promotor das indústrias e da agricultura, e promotor das ciências militares, o conde de Lippe criou em 1761 uma escola militar com especialmente dirigida à formação de engenheiros e artilheiros. Estabelecida no forte de Wilhelmstein sobre uma ilha artificial no lago de Steinhude, no coração do seu principado, o pequeno mas dinâmico estabelecimento adquiriu rapidamente uma forte reputação de exigência e qualidade.
 
 

O Conde, o Engenheiro e o Primeiro Submarino Alemão

 
Foi neste autêntico centro precursor da Investigação e Desenvolvimento em Ciência e Tecnologia militares que, desde 1772, se ensaiou, sob o mecenato do conde de Lippe, o primeiro protótipo de submarino construído em território alemão. O seu pouco conhecido inventor, o obscuro engenheiro militar Jakob Chrysostomus  Praetorius, esteve em Portugal, onde serviu sob o conde de Lippe, e aqui deixou descendência.


Forte Wilhelmstein, obra do Conde de Lippe, no lago Steinhude, concluído em 1767. Originalmente Academia Militar, alberga hoje um Museu Militar. Serviu de modelo para o forte de Nossa Senhora da Graça, em Elvas.
 
Lago de Steinhude. Foto: Friedhelm Denkeler

Reserva natural do Lago Steinhude. NASA
Foi na escola militar de Wilhelmstein que Praetorius testou uma grande quantidade de invenções técnicas. E nas águas do lago Steinhude que deram o nome pelo qual ficou conhecida a sua mais original concepção: o Steinhuder Hecht - literalmente, o Lúcio (do lago) de Steinhude, adoptando a espécie catalogada apenas 20 anos antes por Lineu no seu Sistema Natural - ou Schaumburgische Hecht, em homenagem ao conde de Schaumburg-Lippe. 

Este curioso submersível consistia numa embarcação dotado de um casco alongado de 23 metros, com morfologia de peixe, equipado com bombas de água e tanques de lastro. A sua propulsão dependeria de uma longa cauda articulada movida por um sistema de cabos e roldanas accionado pela tripulação de 40 homens e de uma vela conjunto de 6 mastros rebatíveis que formavam quando hasteados o perfil de uma enorme barbatana dorsal. O  propósito concreto da embarcação seria garantir uma conexão rápida e furtiva às tropas de Schaumburg-Lippe nos seus domínios, assumindo-se como apenas como portador de mensagens em caso de cerco. No entanto, a sua vela pouco discreta no pequeno lago não se coadunaria na prática com esta missão. Outra explicação pressupõe que o conde de Lippe poderia ter testado aqui um futuro veículo oceânico para partilhar mensagens secretas com Portugal em apenas 6 dias por via marítima. A esta ideia adicionou-se um veículo anfíbio apelidado de Hippopotame, do qual se sabe muio pouco.

O Museu da ilha-fortaleza de Wilhelmstein guarda alguns planos técnicos e um modelo do submersível de Steinhude e todo os tipos de outras armas experimentais da colecção do antigo Condado.




Plano do submarino Steinhuder Hecht datado de 1772. Museu de Bückeburg, Baixa Saxónia. Wikipedia

Após a morte do conde em 1777, o projecto deixou de fazer sentido sob o seu sucessor e ulteriormente não sobreviveu aos cortes dos gastos militares exorbitantes no Condado.

O lago Steinhude, onde foi concebido o submersível de Praetorius ainda hoje recorda o feito em reconstituições festivas

Praetorius, inventor do primeiro submarino alemão, em Portugal

 
A construção destas extravagantes embarcações submersíveis não é confirmada, mas a documentação guardada nos arquivos alemães dá-nos conta do regresso do engenheiro a Portugal em 1776 na qualidade de assessor militar, tendo dirigido a reorganização da artilharia.

Em Portugal, Praetorius prosseguiu o desenvolvimento do submersível sob o nome de“fisch”, que deveria ter visto a luz do dia em Lisboa. Aqui Praetorius também se tornou  membro da  recém-criada Academia Real das Ciências de Lisboa, fundada em 1779.



Incorporado no exército português com a patente de Capitão de Bombeiros, nomeado posteriormente sargento-mór de infantaria com exercício de engenheiro e sargento-mór do Real Corpo de Engenheiros, distinguido sócio da Academia de Ciências de Lisboa, o aportuguesado Jacob Crisóstomo Pretorius chegou a Portugal acompanhado por Conrado Henrique Niemeyer (outro discípulo do conde de Lippe na Aula Militar de Wilhelmstein), cujo filho nascido em Lisboa em 1788, serviu como Coronel de Engenharia no Brasil após acompanhar a Corte portuguesa em fuga em 1808 para o Rio de Janeiro e aí permaneceu até à sua morte - como curiosidade, foi tetravô do célebre arquitecto carioca Oscar Niemeyer.

Praetorius residiu em Portugal primeiro entre 1762 e 1764 e, de novo, a partir de 1776. Casou com uma filha de Manuel Dantas, director da Fábrica da Pólvora de Alcântara, onde residiu e passou a dirigir. O engenheiro alemão deixou obra no país de acolhimento, onde viveu até ao fim da sua vida por volta de 1797. Guarda-se, por exemplo, no Gabiente de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar (Lisboa) uma Vista da Cidade de Elvas a partir de Badajoz em 1763 de sua autoria e sabe-se que dirigiu o levantamento da Carta Geográfica da Comarca de Setúbal organizado em 1790 pela Academia das Ciências.

Os primeiros registos meteorológicos sistemáticos publicados no país foram da sua responsabilidade, no âmbito da sua colaboração com a Academia das Ciências. Os resultados destas medições efectuadas em Lisboa foram divulgados no Almanach de Lisboa editados entre 1782 e 1786.

 
Almanach de Lisboa, onde Praetorius publicou os primeiros registos meteorológicos sistemáticos em Portugal. Fonte 

O trabalho científico de Praetorius estendeu-se ao Brasil. Aproveitando a viagem de regresso do naturalista Simão Pires Sardinha de Lisboa ao Rio de Janeiro em 1781-1782, o engenheiro alemão disponibilizou um termometro nautico” previamente apresentado à Academia de Ciências de Lisboa utilizado para realizar uma série de medidas. Os resultados foram descritos na memória Experiencias feitas com hum termometro n´huma viagem para o Brasil, pelo Senhor Simão Pires Sardinha sócio da Academia das Sciencias de Lisboa, juntamente com as resultas, que dellas se podem tirar (1782), uma análise sobre o clima dos trópicos.

Entre outros manuscritos de Praetorius conservados na Biblioteca da Academia de Ciências de Lisboa contam-se uma Memoria sobre a melhor forma dos Canaes e Alveos dos Rios (1782) e a Hydrorganica applicada. Primeira Parte que trata dos Moinhos (1783) - cuja transcrição e estudo deste texto foram publicados por Jorge Augusto Miranda no 1º vol. de “Molinologia Portuguesa”, de 2007, p. 45-62, com o título “Os moinhos de vento e as suas possibilidades nosmanuscritos de Jacob Pratorius – Academia Real das Ciências de Lisboa, final doSéc. XVIII” - envolvendo experiências científicas de aplicadas aos moinhos.

Nada mais se sabe do impacto das suas propostas navais.

Como tantas vezes ocorre, da leitura de muitas de projectos semelhantes torna-se óbvio desde logo o frequente desconhecimento das inúmeras dificuldades intrínsecas ao meio subaquático demonstrado pelos seus autores. Daí que, a muitas propostas reputadas de eficazes no papel, não tenham correspondido em termos práticos verdadeiros avanços tecnológicos. Importa salientar, no entanto, a necessidade de um estudo acerca da vida e obra deste pioneiro alemão no campo da tecnologia náutica e subaquática e, em particular, a sua passagem e eventual documentação acerca dos extravagantes protótipos subaquáticos de Praetorius em Portugal.

 

Mais leituras específicas:


General António Martins BARRENTO, Guerra Fantástica, 1762: Portugal, o Conde de Lippe e a Guerra dos Sete Anos, 2006

António Mesquita BRITO, "Publicações Alemãs sobre o Conde de Lippe: uma Orientação Bibliográfica", in Revista Militar, n.º 2508 (Janeiro 2011)

H. Amorim FERREIRA, “Observações meteorológicas em Portugal antes da fundação do Observatório do Infante D. Luiz”, in Revista da Faculdade de Ciências, vol. III, 9 (1943) 17-29.

Major Miguel FREIRE, "Um Olhar Actual sobre a «Transformação» do Conde de Lippe", in Nação & Defesa, 3.ª Série, n.º 112 (Outono-Inverno 2005)

H. Gabriel MENDES, A Abertura e Exploração da Mina de Azougue de Coina, no Final do Século XVIII, em duas plantas da Mapoteca do Instituto Geográfico e Cadastral, 1978

Curd OCHWADT, Die Erfindung ist kein flüchtiger Gedanke: erster deutscher Unterseebootversuch 1772 auf dem Wilhelmstein im Steinhuder Meer ["A descoberta não é um pensamento fugidio: a primeira experiência com um submersível em 1772 junto a Wilhelmstein no Steinhude Meer"], Bückeburg, 1970.

Ermelinda Moutinho PATACA, “Terra, Ar e Água nas Viagens Científicas Portuguesas (1755-1808)” (tese de Doutoramento em Geociências) Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2006

Timm WESKI, “Hippopotame and Schaumburgische or Steinhuder Hecht: an amphibious craft and a submarine from the second half of the eighteenth-century”, in The Mariner’s Mirror, London, Vol. 88, No. 3 (August 2002), pp. 271-284.