Cavaleiro dos Mares
Séculos de conflitos no Mar deram-nos a conhecer inúmeros protagonistas de grandes batalhas navais, mas poucos ocupam lugares de honra na História naval. Basta lembrar um dos episódios navais épicos da II Guerra Mundial: o cruzador ligeiro «Admiral Graf Spee», primeiro navio de guerra alemão a entrar no activo durante o grande conflito mundial e primeira perda da Kriegsmarine (Marinha de Guerra alemã) após uma única vitória sobre navios de guerra inimigos.
O episódio, que ficou conhecido como a Batalha do Rio da Prata, terminou tragicamente ao largo do porto de Montevideo (Uruguai) em 14 de Dezembro de 1939, com o afundamento deliberado (fotos aqui) do cruzador e o suicídio do Capitão Langsdorff, perante o cerco de grandes unidades da Royal Navy.
O novo "panzerschiff" (cruzador) da Marinha de Guerra alemã foi baptizado com o nome do Vice-Almirante Maximilian Graf von Spee, Comandante da Esquadra de Cruzadores Imperial do Sudeste Asiático, morto em combate naval nas Ilhas Falklands (Malvinas) em 1914. Uma dupla ironia, tendo em conta que o «Graf Spee» foi igualmente afundado no início de um conflito mundial e em mares não muito distantes do local da morte do seu padrinho.
Dispondo de uma notável velocidade (máxima de 28,5 nós) capacidade de fogo, tendo em conta a sua dimensão, que o tornavam num navio ágil e poderoso. Deslocando 16.200 toneladas, com 186 metros de comprimento, armava como armamento principal duas torres triplas equipadas com canhões modernos de 280 mm, uma novidade de peso capaz de impôr respeito aos mais velhos grandes cruzadores ingleses.
Lançado em Junho de 1934, o navio desempenhou missões de treino no Atlântico e serviu em patrulhamento no decorrer da Guerra Civil espanhola, fazendo escala nas Canárias, Tânger, Vigo e Bilbao entre 1936 e 1939.
Entre 18 Abril e 16 Maio de 1939, escalou os portos neutrais de Ceuta e Lisboa, enquanto servia em manobras no Atlântico com os cruzadores «Deutschland», «Admiral Scheer», «Leipzig» e «Koln» e uma esquadra de submarinos. No seu regresso de Espanha, escoltou a famosa Legião "Condor", unidade alemã que participou na Guerra Civil.
Em Agosto de 1939, semanas antes do início da II Guerra Mundial, o «Graf Spee» partiu do porto de Willemshaven numa missão de intercepção da navegação aliada, atravessou o Atlântico de Norte a Sul cruzando até aos mares do Índico, afundando 9 navios mercantes com um total de 50.000 toneladas, mas sem qualquer perda de vida. O Capitão Hans Langsdorff seguiu à risca a Convenção de Haia que exigia a retirada das tripulações antes do afundamento.
Foi no regresso desta missão bem sucedida que as atenções do mundo se centraram na perseguição do navio de guerra alemão algures no Atlântico Sul. À sua espera estava a Force G, nome de código da esquadra de perseguição composta pelos cruzadores ingleses HMS «Ajax», HMS «Cumberland» e HMS «Exeter» e pelo neo-zelandês HMNZS «Achilles» além de vários navios de apoio, liderados pelo Comodoro Harwood, enviada para o deter. No breve combate que se seguiu, o «Exeter» foi posto fora de acção e o «Ajax» recebeu danos sérios, mas o «Graf Spee» perdeu 36 homens e sofreu avarias graves que o levaram a refugiar-se no porto neutral de Montevideo (Uruguai).
72 horas para o Fim
O Graff Spee ancorado em Montevideo. United States Naval History and Heritage Command (World War II database) |
De início, foi concedido um prazo de 24 horas no porto urugaio, tal como era contemplado pela lei internacional. Porém, a emissão de um mandato presidencial permitiu que o prazo se estendesse até às 72 horas, findo o qual o navio teria que se retirar. O Capitão Langsdorff ainda tentou preparar-se para o combate invetivável que se avizinhava, contra forças bem superiores.
Entretanto, após reabastecimento no Rio de Janeiro, uma outra esquadra britânica de 5 navios incluindo o porta-aviões «Ark Royal» recebeu ordens para se reunir aos 3 cruzadores que aguardavam ao largo do Rio da Prata pela saída do inimigo.
Durante a sua curta estadia naquela que seria a última escala, o «Graf Spee» torna-se motivo de fascínio por entre a população local e rapidamente se juntam multidões no porto de Montevideo para admirar a moderna máquina de guerra. Curiosamente, no meio da multidão, encontrava-se Mike Fowler, um jornalista norte-americano que se encarregou de cobrir a história para um jornal dos Estados Unidos. À medida que o tempo se esgotava, os serviços noticiosos da rádio e imprensa deram a impressão, errada, de que a segunda esquadra já se encontrava próxima do porto.
Finalmente, no dia 17 de Dezembro de 1939, o Capitão Langsdorff embarcou com uma tripulação reduzida ao mínimo e o «Graf Spee» levantou âncora às 17:30 envergando bandeiras de combate em ambos os mastros. O cruzador possuía ainda munições suficientes e canhões em bom estado para ripostar. Acreditando que a força naval britânica era agira muito maior, Langsdorff decide evitar uma batalha sem sentido e um banho de sangue previsível por entre a sua tripulação, armadilhando o seu próprio navio a 4 milhas de Montevideo de modo a impedir a sua captura pela armada inimiga. O Capitão e os seus homens retiram-se da derradeira viagem do «Graf Spee» e, frente a Punta Yegua, duas fortes explosões partem o casco em dois, encalhando-o no lamacento fundo do estuário do Plata, que separa o Uruguai da Argentina. Em terra, milhares de espectadores ávidos testemunham os momentos finais do navio.
Logo após o afundamento do cruzador alemão, o Capitão Langsdorff libertou todos os prisioneiros dos navios afundados afundados durante a sua missão transoceânica. Entre eles, o Capitão Dove, do navio mercante «Africa Shell» recebeu de Langsdorff 2 insígnias dos bonés de marinheiro do «Graf Spee» como recordação. A bordo do navio de apoio, Dove e Langsdorff cumprimentaram-se uma última vez, desejando-se mutuamente boa sorte para os tempos vindouros.
Com autorização das autoridades urugaias, a tripulação do «Graf Spee» foi transportada para a Argentina, onde permaneceram em regime de internamento até ao final da guerra. Muitos destes alemães decidiram então ficar no país após o encerramento do conflito.
Mas restava ainda um último golpe de teatro. Três dias após o afundamento do «Graf Spee», o Capitão Langsdorff, refugiado na Argentina, suicidou-se com um tiro na cabeça no quarto que ocupava no Arsenal Naval de Buenos Aires. Foi encontrado vestido com uniforme de gala e enrolado com a kaiserlichen Reichskriegsflagge (bandeira Imperial de Guerra alemã). O seu funeral foi presenciado por uma multidão e o seu túmulo é cuidado ainda hoje. Muitos consideram-no um dos últimos exemplos de rectidão e cavalheirismo no respeito pelas regras de guerra.
A história audaciosa e trágica foi cuidadosamente re-encenada no filme inglês originalmente intitulado The Battle Of The River Plate (1956), mas que adoptou no ano seguinte o título de "Pursuit of the Graf Spee" na distribuição norte-americana. No filme, foi utilizado o cruzador pesado USS «Salem» como «Graf Spee», além de outros 3 cruzadores ingleses.
O «Graf Spee» encontra-se hoje em dia a uma profundidade de 7 a 8,5 metros, num local de acesso ao mergulho particularmente perigoso, devido às inúmeras redes de pesca que se prenderam ao casco, à visibilidade quase nula e fortes correntes que rodeiam os destroços.
65 anos depois: a recuperação arqueológica
Nesta última semana de Janeiro de 2004, decorrem já o início dos trabalhos de uma equipa de peritos uruguaios, argentinos e alemães para recuperar o «Graf Spee».
A ambiciosa ideia consiste em retirar do fundo do rio o navio inteiro, que está a oito metros de profundidade, partido em duas partes. Segundo o director da operação, o uruguaio Héctor Bado (mergulhador profissional responsável pela localização de inúmeros naufrágios no seu país), a recuperação completa poderá levar entre três a quatro anos.
Este é o último navio de guerra alemão passível de ser resgatado. A intenção é retirá-lo integralmente e restaurá-lo para permanecer exposto em Montevideo.
Alfredo Etchegaray, proprietário dos direitos sobre o navio afundado afirmou que o cineasta americano James Cameron, realizador de Titanic, poderia ir à capital uruguaia para filmar a operação. O empreendimento é privado, mas conta com apoio do governo do Uruguai, que já declarou o projecto como de "interesse turístico". Várias grandes empresas de nacionalidade argentina, brasileira, alemã e holandesa asseguram o financiamento do colossal empreendimento, cujo custo exacto só sera desvendado publicamente no decorrer deste mês de Fevereiro.
A primeira peça a ser removida será o telémetro (equipamento óptico que servia de mira para avaliação das distâncias de disparo), que mede 10,50 metros de comprimento, 6 de altura e pesa 27 toneladas. Na operação trabalharão lado a lado o arqueólogo argentino Atilio Nasti e o controverso Mensun Bound, arqueólogo subaquático que alegadamente representa a Universidade inglesa de Oxford.
No entanto, existe um problema de peso. Estima-se que no interior do casco se encontram depositadas entre 6 a 8 mil toneladas de lodo. Se o «Graf Spee» fosse extraído tal qual se encontra, não suportaria todo este peso. Sabe-se também que o casco se encontra em bom estado e que é possível assegurar a sua remoção. Acresce ainda a delicada tarefa de neutralização dos explosivos que ainda se encontram armazenados na proa do navio, as quais não explodiram no dia do seu afundamento.
Tendo em conta a necessidade de aliviar o casco desta carga, a previsão mais optimista dos especialistas, a operação de remoção integral durará entre três a quatro anos. Quanto ao restauro, o processo será certamente mais demorado, pois a enorme estrutura metálica necessitará, consoante o seu estado de degradação, de continuadas aplicações de tratamentos químicos afim de estabilizá-la. Neste ponto, algumas empresas alemãs que interviram na construção do cruzador disponibilizaram a sua colaboração.
Um grupo de mergulhadores ingleses e uruguaios já havia retirado em 1997 um canhão de 150 mm e algumas peças menores, numa missão filmada para o Discovery Channel. O canhão restaurado encontra-se em exposição no Museu Naval uruguaio.
A Memória Sobrevivente
O afundamento do «Graf Spee» nunca conheceu informações precisas na Alemanha durante a II Guerra Mundial. O nome e a reputação do Capitão Langsdorff depressa foram varridos da memória pelo Chanceler do governo alemão, Adolf Hitler, o qual nunca concordou com a decisão tomada pelo Capitão, tendo mesmo emitido ordem para o «Graf Spee» enfrentar em combate a esquadra britânica.
Quando a II Guerra Mundial terminou, 6 anos após a Batalha do Rio da Prata, Sir Eugene Millington-Drake, o agente diplomático britânico presente em Montevideo na altura dos acontecimentos reuniu uma compilação exaustiva de documentos sobre o sucedido. Publicada originalmente em 1964 com o título The drama of the «Graf Spee» and the Battle of the River Plate, apresenta documentação proveniente de altos oficiais de ambos os lados que tomaram parte no episódio. Mas ainda havia mais informação por divulgar, na posse de alguns veteranos de guerra.
Nas décadas de 1960 e 1970, antigos oficiais alemães e ingleses reuniram-se em Londres e na cidade portuária de Laboe (Alemanha). Em 1979, um grupo de veteranos ingleses visitou a Argentina na qualidade de convidados de veteranos alemães residentes nesse país. Os antigos inimigos trocaram histórias num espírito de reconciliação.
Ainda hoje, tanto na Alemanha como na Argentina, os tripulantes veteranos do «Graf Spee» convocam reuniões anuais em memória do Capitão Langsdorff, uma lealdade que por vezes é criticada por alguns sectores da sociedade.
Quanto aos ingleses, celebram igualmente a histórica batalha, particularmente os veteranos do HMS «Ajax». Simbolicamente, uma vila do Estado do Ontario, no Canadá, foi distinguida com o nome de Ajax em memória do navio-almirante da esquadra de cruzadores britânicos. Muitas das suas ruas ostentam nomes a vários membros da tripulação do cruzador. Em 1999, uma proposta para incluir o nome de Hans Langsdorff a uma das ruas canadianas foi aprovada por unanimidade pelos veteranos ingleses.
Update
Em Fevereiro de 2006, a águia ornamental de 2 metros originalmente ostentada na popa do «Graf Spee» foi retirada dos destroços do navio.
Por seu lado, o telémetro de artilharia - peça de 27 toneladas - recuperado em 2004 já ocupou o seu lugar de monumento público. Juntou-se, assim, a outra relíquia do navio, a âncora recuperada em 1972.
Entretanto, um decreto presidencial decretou o cancelamento de todas as intervenções subaquáticas em águas uruguaias em 2009.
Entretanto, um decreto presidencial decretou o cancelamento de todas as intervenções subaquáticas em águas uruguaias em 2009.