quarta-feira, fevereiro 18, 2004

O Navio de Newport: um Mistério Marítimo do Renascimento



A Descoberta
Em Junho Ship%20pic.jpg de 2002, a construção de um novo complexo de Artes e Teatro na margem do rio Usk, na cidade de Newport (País de Gales), pôs a descoberto o casco bem preservado de um navio mercante antigo, posteriormente datado de c. 1465. Arqueólogos, historiadores e a população local rejubilavam ante esta revelação de excepcional importância, tanto para a história local e britânica como para a Arqueologia Náutica.

Porém, cedo se revelou que o Conselho Municipal (Newport City Council), proprietário legal do local onde ocorreu esta admirável descoberta, planeava prosseguir as obras após a conclusão de um breve estudo do navio. Previa-se que, após o levantamento de registos preliminares e recolha de amostras, grande parte do casco fosse destruída logo no final de Agosto de 2002, permitindo a conclusão das obras no prazo previsto.

De imediato, formou-se um amplo movimento cívico para salvar o navio de Newport, adequadamente denominado "Friends of the Newport Ship", defendendo a salvaguarda desta nova peça de património marítimo mediante a sua conservação e estudo pormenorizado. O apoio reunido foi de tal ordem que a Assembleia Nacional Galesa viu-se obrigada a intervir, assegurando o necessário financiamento da remoção e conservação do navio. O custo total, estimado em 3,5 milhões de libras, é suportado não só pelo Conselho Municipal e o Governo Regional (Assembleia Galesa), como também através de contribuições e donativos públicos.

A Importância do Navio de Newport
Trata-se do mais completo casco de um navio do séc. XV descoberto e conservado na Europa. De facto, e apesar das obras terem destruído partes do navio, o casco, construído em carvalho (a quilha em faia), manteve-se na sua quase totalidade, estimando-se o seu comprimento original em 25 metros e 8 metros de largura máxima. Também se registaram indícios claros da existência de um convés e da superestrutura. Calcula-se que deslocasse entre 100 e 200 toneladas, o que o tornava num navio de médio porte, perfeitamente adaptado a navegações atlânticas.

Recorrendo à dendrocronologia, algumas madeiras do casco forneceram uma datação precisa, entre 1465 e 1466, relativamente ao corte das árvores destinadas à sua construção.




Historicamente, o navionship26big.jpeg é um testemunho eloquente das navegações mercantes florescentes no porto de Newport em particular, e da Inglaterra em geral.
Arqueologicamente, o casco descoberto representa uma etapa evolutiva a meio caminho entre embarcações medievais e os grandes navios do Renascimento. No fundo, ainda é um navio construído segundo o saber e técnicas empíricas medievais. Constitui também o único exemplar sobrevivente de navio mercante armado do séc. XV, anterior em várias décadas à construção do famoso «Mary Rose», nau de guerra de Henrique VIII afundada em 1545, cujo casco foi recuperado e se encontra hoje conservado em museu próprio nas docas de Portsmouth.

A descoberta de um navio contemporâneo dos Descobrimentos adquire naturalmente um imenso valor potential no conhecimento técnico e antropológico das práticas marítimas do Renascimento. Um potencial que vai sendo devidamente avaliado à medida que os trabalhos de conservação e análise desvendarem os segredos contidos nestes fascinantes vestígios de uma outra Era, em que se deram os primeiros passos através dos mares no caminho da globalização.

Na mesma década em que morreu o Infante D. Henrique, grande impulsionador das navegações portuguesas, e apenas 20 anos antes da passagem do Cabo das Tormentas (re-baptizado da Boa Esperança) por Bartolomeu Dias e 30 anos antes da chegada de Vasco da Gama à Índia.
De tonelagem semelhante à sua contemporânea caravela «Santa María» que conduziu Colombo na sua primeira grande viagem de descoberta, o navio de Newport apresenta um porte comum (na sua época) de unidades utilizadas no transporte de archeiros galeses durante a Guerra dos Cem Anos. Aliás, terá sido num navio deste tipo que Henrique VII se fez transportar a Gales no decorrer das Guerras das Rosas.

"Save Our Ship": a Luta pela Recuperação
A campanha SOS ("Save Our Ship") logrou obter resultados positivos junto do círculo político regional, mediante o apoio de uma enorme onda de apoio popular, institucional e científica gerada em torno do achado. Com a ajuda do "site", visitas guiadas ao local de escavação, debates públicos, artigos de imprensa, manifestações de rua e recolha de assinaturas foi realmente possível salvar o navio em perigo. A BBC também esteve presente e realizou um documentário que deu a conhecer esta intervenção arqueológica.

Mas nem tudo foi pacífico. A pesada cofragem instalada durante os trabalhos prévios no estaleiro de obras e intervenções anteriores na margem do rio ditaram a destruição quase total da popa e proa do navio. Posteriormente à primeira fase de escavação, o desinteresse por parte do empreiteiro ficou comprovado com a intencional destruição de parte da popa do navio, afundada numa imensa massa de betão, isto apesar de um relatório arqueológico anterior ter prevenido quanto à importância de uma sondagem final nesse local.



Ao lado pode verBow-&-Stern-projections.jpg-se o perímetro da cofragem com as consequentes zonas afectadas (popa e proa) e a área escavada.

A equipa arqueológica inicial, proveniente da Glamorgan Gwent Archaeological Trust, completou o registo, escavação e remoção da secção principal do casco, tendo sido substituída em 2003 por uma equipa mista da Universidade de Oxford e do "Mary Rose Trust", instituições especializadas em arqueologia náutica. As peças, removidas individualmente, foram armazenadas e submersas em grandes tanques de conservação cedidos por uma empresa siderúrgica local.
O relatório arqueológico da equipa da Universidade de Oxford relativo à escavação da proa, está disponível aqui .



Enterrado nas lamas fluviais,  ship3.jpgo navio permaneceu bem conservado em ambos os bordos (embora o de estibordo tenha colapsado).
Sobreviveram assim 63 cavernas que compunham o esqueleto estrutural interno do navio, assim como 32 tábuas de forro no lado de estibordo e outras 16 a bombordo. Várias peças de reforço, como escoas e peças de enchimento mantiveram-se "in situ" unidas às cavernas por cavilhas de madeira, assim como algumas tábuas do forro interior. Também se conservou a carlinga (base) do mastro principal, completa com o poço da bomba (de escoamento da água). O casco "trincado" (em tábuas sobrepostas), característico dos navios medievais exibia uma imensa quantidade de pregadura em ferro .

A boa qualidade de construção é evidente, em particular as grandes escarvas de junção nas grandes peças de madeira, algumas das quais eram compostas por um conjunto de 7 peças, assinalando-se nestas mesmas peças vestígios do trabalho na madeira marcado pelas ferramentas de carpintaria.

Ao longo da escavação, foram sendo encontrados artefactos associados, como vários exemplares de calçado em cabedal, fragmentos têxteis, restos de velas e roupa de lã, cabos e cordame diverso, cerâmica, algumas moedas, projécteis de artilharia em pedra, e instrumentos em madeira relativos à navegação (cadernais), aduelas de barris, além de artefactos pessoais: dois pentes e uma peça de jogo. No final da intervenção, foram também descobertos ossos humanos.




Dada a emergência da intervenção, não foi possível actuar com um plano (e condições) inteiramente _38265024_ship300.jpgpré-definidas. Entre limitações impostas pela segurança no estaleiro de obras e a pressão para concluir no mais breve prazo possível, a equipa deitou mãos à obra, cuidando de nunca pôr em risco a integridade das peças, as quais exigiam um constante humedecimento para evitar a sua destabilização. Após um registo tão completo quanto possível, o navio foi desmontado peça a peça, na ordem inversa pela qual foi construído. O delicado processo de remoção demorou cerca de 13 semanas, sendo necessário serrar cuidadosamente as cavilhas de madeira e desagregar as concreções nos espaços anteriormente ocupados pela pregadura, de modo a separar todas as peças. O peso e dimensão de algumas das peças de madeira retiradas (algumas com 200 e 400 quilos) recorrendo a meios industriais.

A somar a estes condicionamentos, o navio exibia feridas recentes: uma grande quantidade de pilares em betão já tinham sido trespassado o casco em vários locais (visíveis nas fotografias), ainda antes de se declarar o seu achamento. Impunha-se a sua remoção, complicando sobremaneira a estabilidade do casco. Devido a estes estragos, a peça de maior comprimento não tem hoje mais de 6 metros.



Ao lado, uma imagem gerada em computador da zona da proa afectada por um pilar em betão.

As atenções da equipa centram-se neship03fig06.jpg agora noutra descoberta, revelada sob o local do casco, uma estrutura de apoio em madeira que aparentemente mantinha o navio de pé durante o que se julga ter sido uma operação de reparação fracassada, ditando o abandono do navio.

Prevê-se a exposição permanente do navio não muito longe do local onde foi desenterrado, reconstruído tal como foi encontrado, no novo Centro de Artes e Teatro de Newport, cuja inauguração está prevista para meados deste ano.
Os visitantes poderão então admirar e passear sobre uma estrutura em vidro instalada por cima do casco, além de uma galeria inferior, ao nível da estrutura. Um passeio a bordo da História marítima na última morada do navio misterioso.

O Conde "Fazedor de Reis" e os Piratas Medievais Ingleses
Recentemente, as investigações em arquivo produziram provas que apontam para o envolvimento do famigerado Conde de Warwick (1428-1471), primo do rei Ricardo III e figura chave na poítica medival inglesa. Assim, o único navio inglês sobrevivente do séc. XV surviving medieval poderá ter sido propriedade de Richard Neville, cognominado Warwick "the Kingmaker" ("o Fazedor de Reis"), devido ao seu poder, riqueza e influência na Corte inglesa. Mediante manipulações suas Eduardo IV chegou a trono em 1461, e o deposto Henrique VI conseguiu retomá-lo, brevemente, em 1470. A sua fama valeu-lhe ser imortalizado como uma das personagens principais em algumas das peças históricas de William Shakespeare: "Henry VI" (Parte 2) e "Henry VI" (Parte 3), cuja acção decorre no cenário instável e violento das Guerras das Rosas entre as Casas de York (defendida pelo Conde) e Lancaster.

Na realidade, o Conde ganhou notoriedade pela sua participação activa no fomento da pirataria. Apoderou-se de Newport após a morte em combate do seu antecessor, o Conde de Pembroke. No final de 1470, Warwick interveio na defesa de Inglaterra e Gales face a uma tentativa de desembarque liderada pelo deposto Eduardo IV. Contudo, no ano seguinte foi morto na Batalha de Barnet e Eduardo IV reconquistou a Coroa.

Nessa altura, o Conde recorreu aos seus próprios recursos financeiros em apoio da Casa Real, contraindo dívidas pesadas. Para reequilibrar as suas finanças, Warwick permitiu aos seus navios a prática da pirataria, o que resultou na captura de inúmeros navios portugueses, espanhóis e bretões. Calcula-se que a frota privada do Conde de Warwick incluísse navios de grande porte (para a época), de até 350 toneladas. Uma carta de Warwick entretanto revelada dá-nos a conhecer ordens suas para reparações a fazer num navio de alto-bordo justamente em Newport no ano de 1469.

Porém, há nesta história e nos vestígios da carga do navio de Newport um elo português, que levantam novas teorias.

Um Naufrágio Português em Terras de Sua Magestade?
A hipótese atraente de o navio de Newport poder ter sido português, capturado por piratas ingleses e trazido para o País de Gales não está inteiramente posta de parte, mas também carece de provas suficientes.

Entre os 300 artefactos a bordo do navio, encontraram-se abundantes fragmentos de cerâmica portuguesa e 4 moedas de cobre dos reinados de D. Duarte (1433-1438) e D. Afonso V (1438-1481), para além de grandes pedaços de cortiça (não há ainda imagens disponíveis na Internet). Aparentemente, o navio regressara recentemente de Portugal.




Seria interessante poder  P9082940.jpgcomparar técnicas e detalhes de construção com outros destroços de navios tardo-medievais descobertos, por exemplo, em Portugal: dois exemplos recentes "Aveiro F" e "Aveiro G" (não considerando o "Ria de Aveiro A" devido ao seu reduzido porte e dimensões), ambos de casco trincado e datados do séc. XV, embora em mau estado de conservação poderiam sem dúvida base de estudo comparativo. Infelizmente, ainda não há dados disponíveis "online" quanto à informação extraída destes dois naufrágios, descobertos e estudados nos últimos dois anos por equipas do CNANS (Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática).

Mais completa é a informação coligida por Paulo Jorge Rodrigues no seu trabalho arqueológico sobre o denominado navio do Cais do Sodré. Recorde-se que as embarcações conhecidas por "Ria de Aveiro A" e "Cais do Sodré", ambas do século XV, constituem dois dos mais antigos marcos da técnica de construção em "esqueleto primeiro" ("skeleton-first") na Europa atlântica.

De qualquer modo, a intervenção do navio em acções militares é consensual, pois também se encontraram diversas peças utilizadas em capacetes, projécteis de artilharia e pelo menos uma braçadeira de protecção utilizada pelos archeiros da época.
Ao que tudo indica, os trabalhos de reparação do navio, terão sido abandonados na mesma época em que o Conde de Warwick se encontrava em dificuldades, tendo sido abandonado à beira-rio.

No entanto, a história do navio talvez só emergirá após o longo programa de conservação, restauro e investigação em curso, após uma escavação trabalhosa.

História amplamente noticiada, entre outros, no "Telegraph", no "Guardian" e na BBC.
Aprecie-se também neste "site" uma excelente galeria de fotografias realizadas antes da remoção do navio.

O «Matthew» e a "Matthew Society"
Em 1497, o veneziano Giovanni Cabotto (naturalizado John Cabot) partiu de Bristol a bordo do «Matthew», numa viagem exploração que o levou até à Terra Nova.
O «Matthew», navio do séc. XV sobrevive também hoje em dia, mas em réplica, no porto de Bristol para prazer dos muitos turistas que já subiram a bordo e desfrutaram de pequenas excursões marítimas. Uma viagem a não perder, quando de visita a terras de Sua Magestade, evocando outros descobrimentos.

A "Matthew Society", fundada em 1996, organiza encontros abertos a todos os interessados e curiosos dedicados à História náutica e marítima de Setembro a Maio no "Jury's Hotel" em Bristol, mantendo contacto com o público interessado na História e nos navios que a fizeram.