Ouro, prata e colónias apetecíveis.
A relação entre pilotos portugueses e corsários ingleses manteve-se por muitos e frutuosos anos.
Para estes, a meta tinha-se tornado o ouro e a prata espanhola do Perú. O obstáculo da distância só poderia ser vencido com navios e pilotos aptos para uma viagem particularmente longa em mares não totalmente conhecidos. Mas o facto permanecia: este manancial não se encontrava senão à distância de uma viagem marítima. Era apenas uma questão de tempo.
O primeiro intruso nos mares do Sul foi um pequeno navio particular, o capitão foi Drake e o piloto um português. Os conhecimentos de Nuno da Silva, inesperadamente capturado ao largo de Cabo Verde, foram suficientes para auxiliar Drake a desferir porventura o golpe mais audacioso do século XVI no coração do império espanhol. Após uma brilhante travessia do Estreito de Magalhães, o corsário inglês dirigiu-se para a costa do Perú, onde saqueou cidades e capturou navios, conseguindo um valioso carregamento em metal precioso. Assim, em 1578, enquanto Drake cruzava as águas do Pacífico, prosseguindo a segunda circumnavegação bem sucedida do globo, em Portugal, o rei D. Sebastião e grande parte da principal nobreza morria em Marrocos e o trono ficara à mercê de inúmeros pretendentes, tendo sido finalmente conquistado por Filipe II.
De regresso a Inglaterra, o pequeno navio do corsário, o Golden Hind, descarregou um lastro de centenas de lingotes de ouro e prata ganho num cruzeiro de roubo e pilhagem impunes, coroada pela concretização da segunda circumnavegação do globo. Drake entrou na lenda dos mais famosos navegadores e o seu feito depressa correu mundo. A partir desse dia, o capitão Francisco, tal como depressa ficou conhecido, tornou-se na personificação do inimigo de Espanha e do novo poder marítimo inglês.
Logo no início da década de 1580 agrava-se consideravelmente a tensão entre Inglaterra e Espanha sobre a
exclusividade da navegação e comércio transatlânticos. Para os súbditos de Filipe II, colocava-se mais do que nunca a necessidade de interromper o quase centenário fluxo clandestino de pilotos portugueses, acolhidos pelas potências rivais de Espanha. Opoinião partilhada por personagens poderosas, como o Presidente do Conselho de Índias (em Madrid), autoridade máxima do órgão administrativo das colónias espanholas no continente americano, a denunciar este problema como mais um argumento justificativo da anexação de Portugal. Esta posição encontra-se bem reflectida numa carta ao rei: "Todos estos pilotos que van en estas armadas de ingleses y franceses son portugueses, que para esto y otras cien mil cosas convendría ser Vuestra Magestad Rey y Señor de aquellas tierras".
Esta preocupação pareceu justificar-se da maneira mais alarmante apenas duas semanas mais tarde. Na corte espanhola circulou o rumor de que o próprio Drake teria estado em Lisboa para o planeamento da sua viagem de regresso pelas Índias Orientais, desde o Pacífico até ao Atlântico Norte: "Hase entendido que Francisco Draque, antes que partiese de Inglaterra para la Mar del Sur, estuvo algunos días en Lisboa, procurando entender la navegación que traen los portugueses desde la India Oriental acá, con designio a lo que ahora se entiende de si se pusiese en la Mar del Sur traer aquel viaje, pareciendo cosa muy dificultosa volver a desembocar por el estrecho y tambien el volver por Tierra Firme,… y que de este viaje llevó una carta. Parece sería de mucha importancia haber un treslado de ella, y así parece que convendría que Vuestra Magestad mandase a Zayas escriviese luego a don Cristóval de Mora la procurase y enviase a Vuestra Magestad, pues quedaría algun treslado de ella, y don Cristóval podría procurar de entender con qué persona o personas trató este corsario, para que por ellas pudiese haber mejor recaudo en este negocio". Filipe II anotou apressadamente à margem que se avisasse o seu secretário "para que luego escriba" e desse início às buscas (Madrid, 31 de Agosto de 1579). Um ano depois, logo após o regresso triunfal de Drake da sua circum-navegação, o embaixador espanhol em Londres escrevia ao rei que "el Draques afirma que si no fuera por dos pilotos portugueses que tomó en un navío que robó y hechó a fondo en la costa del Brasil a la yda no pudiera haver echo el viage. Ha dado a la Reyna un diario de todo lo que le ha sucedido en los tres años y una gran carta" (carta de D. Bernardino de Mendoza a Filipe II, Londres, 16 de Outubro de 1580).
Contudo, num aparente paradoxo, a invasão espanhola de Portugal acabou por provocar a fuga de mais pilotos e marinheiros experimentados, que muita falta iriam fazer às armadas de Filipe II nos anos vindouros. Disso mesmo era informada em 1582 a Sereníssima República de Veneza pelo seu embaixador na corte espanhola, a propósito dos preparativos da esquadra do Marquês de Santa Cruz para a conquista dos Açores: "Stava l’armata ben fornita de ogni cosa, ecceto che di marinari, che si haveva gran mancamento massime delli pratici in quella navigatione, che sono li portughesi, li quali per non andar contro le forze di Don Antonio s’erano partiti, et nascosti, et quelli pochi, che per forza sono imbarcati, li seguono quase in catene, ci sono riputati cosi mal affetti verso il servitio del rè, che non se ne possono fidare". Iam faltando marinheiros, os quais evitavam assim bater-se contra D. António, Prior do Crato, seu conterrâneo. Nove dias depois, quando da partida da armada de Lisboa, verifica-se a fuga de outro grupo de mais de 60 marinheiros portugueses, recorrendo a um estratagema pouco ortodoxo, mas aparentemente eficaz: "Doppo ch’imbarcò il Marchese Santa Croce general nell’armata fugirono dalla sua Nave cap.a forse 60 marinari portughesi, et cosi fecero dell’altri in buon numero usando percio diversi ingani fino travistirsi con habbiti da donne et uscir con esse, ch’erano introdotte in li nave per occasione di visitar i mariti et i parenti". Por trás deste hilariante episódio de marinheiros foragidos disfarçados de mulher, escondia-se uma verdadeira dor de cabeça para a administração militar espanhola na tentativa de compôs as suas forças navais. Este incidente obrigou as autoridades espanholas, nos três dias seguintes, a embarcar à força os poucos candidatos ao serviço que ainda se encontravam em Lisboa.
Em Portugal, assiste-se desde o início da década de 1580 a uma crescente falta de marinheiros e artilheiros para a Europa septentrional e para a Ásia. Dois motivos principais ditaram este movimento, ambos provocados pela conturbada situação política, social e financeira portuguesa no final da década de 1570: em primeiro lugar, o forte sentimento de animosidade em relação a Castela logo após a anexação de Portugal, o que provocou a recusa de muitos em servir o monarca estrangeiro. Por outro lado, a procura dos seus serviços, que nunca deixou de se fazer sentir nas nações rivais das monarquias ibéricas desde a primeira metade do século, aumentada agora proporcionalmente pelo incremento das suas frotas comerciais e das oportunidades flagrantes que o comércio à escala continental e mundial oferecia, e que claramente ultrapassava as possibilidades do exclusivismo e monopólio de Espanha e Portugal. Isto numa altura em que não só o comércio marítimo ibérico era alvo de ataques quase rotineiros por parte dos seus rivais do Norte da Europa, como se concretizavam no plano prático os projectos de estabelecimentos comerciais rivais, por exemplo, no Novo Mundo.
Muitos marinheiros recusaram-se prestar serviço também por razões de ordem prática, tal como a garantia do seu pagamento. O problema do atraso nas remunerações estimulava as deserções e as faltas ao trabalho a bordo dos navios e armadas do rei: "De marineros ha de aver mucha necessidad porque los que havia en esta çiudad van todos en las naos de las Indias y los que ay en los puertos de donde son los que he tomado que son Avero Oporto y Villa de Conde no han de querer salir a servir hasta saber el sueldo que han de tirar y para que Vuestra Magestad sea bien servido y con la brevedad que este negocio requiere convendrá que se les den buenas pagas y raciones y si esto no se haze con ellos Vuestra Magestad no lo sera porque todos aborreçen el yr a servir en armadas... hasta agora no ha avido ninguno que quiera servir antes se an huydo muchos en entendiendo que se azia Armada…". Reivindicações compreensíveis, mas surpreendentes, dada a reconhecida dureza do sistema militar espanhol para com os súbditos do reino anexado. O poder naval espanhol parava para ouvir as exigências dos marinheiros portugueses, antes de partir em armada pelo Atlântico fora.
Como medida preventiva, é emitido alvará em nome do rei datado de Lisboa, 20 de Dezembro de 1597, estipulando uma pena de 2 anos de degredo às pessoas que, tendo recebido soldo após alistamento ao serviço da Coroa, se ausentassem do mesmo. Uma hemorragia que, contudo, nunca chegou a ser devidamente estancada. Passada a época de glória das navegações ibéricas, assistia-se gradualmente a uma sucessão em larga escala no domínio dos mares. Anunciava-se a decadência do secular poder naval, mas para qualquer dos opositores ainda eram necessários pilotos, pois os destinos almejados não tinham mudado.
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