O mar não se domina, apenas se deixa conhecer. Mas quem melhor o conhece, vai mais longe. Eis alguns marítimos portugueses que se notabilizaram no decorrer de Quinhentos.
Em Portugal, segundo um testemunho, "la más de la gente de este Reino que biben a diez y a mas leguas del mar, su principal officio es seguir el mar para todas las partes donde se navega y se llevan y traen mercancias sin lo qual no pueden vivir". Esta declaração, dirigida por um oficial galego a D. Filipe I (Filipe II de Espanha) em 1589, bem podia ter sido escrita no início do século. Nessa época, como resultado das navegações pioneiras das Descobertas, a imagem dos pilotos marítimos portugueses era sobejamente reconhecida e alvo de respeito em toda a Europa Ocidental. Esta admiração foi expressa pelos seus contemporâneos das mais diversas maneiras: a Utopia, do humanista inglês Thomas Moore foi apenas a mais conhecida. Claro que nem todos os pilotos que se apresentavam nas cortes estrangeiras eram verdadeiramente competentes, mas sim charlatães ou espiões. Com alguma ironia, Diogo de Gouveia comentava então que qualquer português que aparecesse com um astrolábio e um mapa era objecto de proposta de trabalho.
Naturalmente, muitas potências rivais cobiçaram a competência destes pilotos e esforçaram-se através de aliciamentos sistemáticos por atraí-los, na tentativa de beneficiar dos seus serviços para os acessos marítimos ao Atlântico Sul, Índico e Extremo Oriente, cujo saber técnico da navegação era ciosamente resguardado da cupidez dos monarcas estrangeiros pela Casa da Índia em Lisboa. Porém, o apreço em que eram tidos atraíu também muitos falsos pretendentes dispostos a beneficiar das regalias oferecidas sobretudo, numa primeira fase, pelos monarcas franceses e, a partir de meados do século, pela Inglaterra.
As notícias sobre o envolvimento de pilotos portugueses nas navegações estrangeiras são muitas, e já no primeiro quartel do séc. XVI dá-se a mais famosa de entre todas. Fernão de Magalhães fez história em 1519, ao largar da Andaluzia em busca das ilhas das Especiarias (Molucas) em nome dos reis castelhanos. A bordo, muitos portugueses, entre os quais o piloto João Carvalho. Magalhães acaba morto numa recôndita ilha das Filipinas, mas a sua nau regressa a Espanha, completando a primeira circumnavegação do mundo. Entre os vários portugueses da sua armada, encontra-se Estêvão Gomes, natural do Porto, piloto da nau Santo António. Abandonou a armada com a sua nau antes de terminada a passagem do Estreito. Anos mais tarde, participa noutra expedição espanhola, no reconhecimento da costa norte-americana.
Justamente a partir desta época, decerto confirmando a mestria e o saber demonstrados, multiplicam-se as notícias sobre armadas estrangeiras com pilotos portugueses. Alguns destes personagens, pagos a peso de ouro, participaram ao lado de Magalhães na sua aventuara global, enquanto muitos outros apenas possuíam em comum o facto de pertencerem à mesma geração que irá conduzir tantas expedições europeias a águas restritas. Pilotos mercenários como Estêvão Gomes (companheiro de Magalhães), ao qual se juntou Afonso da Costa, dirigem a partir de Castela uma carta ao rei D. João III de Portugal, propondo-se alcançar o ouro do Peru "muito mais parte pela costa do Brasyll que pela navegasam per onde os castelhanos vam", ou seja, tentanto vender segredos de navegação detidos pelos mesmos monarcas castelhanos que pagaram a Magalhães para contornar a navegação portuguesa (carta de Fernão Álvares de Andrade ao Conde da Castanheira, Évora, 6 de Abril de 1535). Contudo, Estêvão Gomes, tal como Diogo Ribeiro, mestre de cartografia na Casa da Contratação em Sevilha (semelhante à Casa da Índia, em Lisboa) e outros portugueses no estrangeiro, foram oficialmente banidos do reino e declarados "pessoas corru(p)tas e danadas e não se deve deles esperar justo neem verdadeiro juizo" (minuta de carta enviada aos juristas portugueses na discussão sobre a demarcação geográfica das ilhas Molucas, Évora, 25 de Março de 1524). Mas Estêvão Gomes reaparece em 1529, tomando parte numa expedição enviada pela Coroa de Espanha a descobrir uma ligação marítima do Atlântico ao Pacífico entre o norte da Florida e a Terra dos Bacalhaus (Terra Nova, hoje no Canadá). Partiu da Galiza com um galeão armado por financiamentos privados, passou por Cuba e pela Florida, reconhecendo o litoral leste norte-americano, sem ter descoberto a passagem procurada. Certamente, uma questão de dinheiro e alguma fama.
O êxodo foi constante. Pedro Serpa deverá ter sido um dos primeiros a partir e, em 1525, encontrava-se servindo a burguesia normanda. Serviço efémero, acabando enforcado no Brasil, por ordem de Martim Afonso de Sousa que castigava, com a pena máxima, a deserção do piloto.
Outro nome, o capitão e piloto Estêvão Dias, o "Brigas", é recorrente em vários testemunhos da época. Em Maio ou Junho de 1526 partiu de Honfleur, na Normandia, a armada de 3 naus comandada pelos irmãos Verrazano, com destino às Molucas pelo Estreito de Magalhães. As tempestades do Atlântico Sul impediram-nos de efectuar esta travessia e uma das naus, com o piloto "Brigas", prefere dobrar o Cabo da Esperança e tentar atingir o arquipélago das especiarias pelo Índico. No entanto, após terem chegado à ilha de Sumatra, iniciam a travessia de volta ao Atlântico, passando pelas Maldivas, e acabam por naufragar em Madagáscar. De entre os poucos haveres que conseguiram salvar da nau, contavam-se uma carta de marear "muito boa e muito bem feita" e um Regimento de navegação português.
Passado pouco mais de uma década, ainda foi possível recolher informação da baía onde naufragara outro navio da mesma armada, pilotado por um português de alcunha o "Rosado", acrescentando que, quanto a Brigas, fora arrastada fora de rota devido fortes ventos, indo parar a Diu (Norte da Índia) em 1529. O sultão Bahadur, que então reinava nessa região, denominada Cambaia, "a todos os franceses dela fez mouros, que eram oitenta e dous, os quais despois, sendo elches, levou no ano de 1533 por bombardeiros na guerra que teve c’o rei dos Mogores, onde todos morreram, sem um só ficar vivo". A história foi contada pelos 36 sobreviventes franceses feitos cativos pelo rei de Cambaia, em carta, não datada, enviada por aqueles ao Governador da Índia, pedindo a sua liberdade. Em vão.
Mas a saga dos pilotos portugueses continuou, recheada de perigos e desastres e presenteada por vezes com recompensas régias. A partir de 1529, com a viagem bem sucedida dos irmãos bretões Parmentier às Molucas pelo Índico, a bordo de navios do armador e corsário normando Jean Ango, ficara provado que era possível aos franceses navegar até ao Índico e regressar. Questões de outra ordem, porém, impediram o prosseguimento das navegações francesas. A guerra com Espanha obrigou à concentração no Atlântico, o que acabou por beneficiar apenas os corsários e piratas normandos e bretões.
Na década de 1530, há notícia de pilotos portugueses em locais onde não se esperaria encontrá-los, na actual Guatemala. Ainda antes da conquista do Peru, Pedro de Alvarado, o braço direito de Fernando Cortés no México, escreve a Carlos V em 1532 uma carta a anunciar a aparição na pequena corte de Guatemala, havia dois anos, de dois pilotos portugueses. Esses dois pilotos chegaram junto do conquistador espanhol e puseram-se ao seu dispôr para com ele irem conquistar aquele «Império Pirú», o qual nunca Pizarro (afirma a carta) conseguiria tomar porque achava-se em Panamá sem meios para isso. Enquanto que ele, Alvarado, com uma frota sob a direcção dos dois pilotos portugueses poderia muito bem, não só conquistar o Peru, o que era simplicíssimo, mas uma vez conquistando o Império dos Incas eles dirigi-lo-iam facilmente até às Molucas para apoderar-se igualmente destas ilhas. Nesse ano de 1532, parte da mesma cidade de Guatemala para a conquista do Peru, a acompanhar um outro conquistador espanhol famoso, Sebastián de Belalcázar (que habitava então na Nicarágua), um piloto chamado João Fernandes. Este piloto é um mistério, visto que é a única personagem importante, o único piloto conhecido a quem faz referência Garcilaso de la Vega, o autor da história do descobrimento do Peru, dizendo dele, justamente que "no se sabia dónde era". Este João Fernandes assiste à conquista de Tumbes e de Cajamarca, em companhia de Pizarro, e regressa rapidamente a Guatemala. Homem de grande iniciativa, vêmo-lo em breve voltar ao Peru, desta vez como piloto da expedição organizada pelo conquistador Alvarado que em 1534 desembarca na costa do Equador actual, para subirem os expedicionários até Quito, tendo passado da região tropical tórrida a uma região glacial, morrendo de fome e de frio muito deles.
No mesmo ano de 1532, encontrava-se na Flandres um português foragido que se apresentou como piloto, tendo sido muito bem acolhido. D. João de Mascarenhas avisou de imediato D. João III do sucedido, informando o rei da ocorrência de muitos casos similares que "cá no estrangeiro vem muitos destes portugueses que ainda que preguem marinharia falsa como bulas, com serem portugueses lhes dão crédito neste mister de pilotagem". Ainda durante o reinado de D. João III, o piloto Pero Fernandes foi afastado do envolvimento em nova viagem às Índias Orientais patrocinada por Jean Ango, devido à acção do representante da Coroa portuguesa Pero Mascarenhas. No entanto, é patente a dívida dos monarcas franceses para com os navegantes portugueses estrangeirados, seus predecessores e seus guias.
Filipe II de Espanha, enquanto rei-consorte de Inglaterra (1553-1554), terá sido um dos responsáveis pela tomada de consciência e vontade de inovação relativamente às navegações oceânicas inglesas, precisamente a partir de meados do século. O primeiro resultado prático desta sua preocupação foi o envio para a Península Ibérica em 1558 do piloto escocês Stephen Borough, para as famosas aulas de navegação e cosmografia fornecidas pela Casa de Contratación, em Sevilha. No seu regresso, Borough trouxe consigo o manual espanhol corrente, Arte de Navegar (1551), de Martín Cortés, que foi imediatamente traduzido para o inglês como The Arte of Navigation (London, 1561), por Richard Eden. O próprio Borough, juntamente com o sábio John Dee, seriam os tutores do navegador e corsário Sir Martin Frobisher em Inglaterra, um dos pioneiros das expedições marítimas em busca da mítica Passagem do Noroeste (no extremo Norte do continente americano) para atingir a Índia e a China. Na realidade, durante a primeira metade do século XVI os pilotos escoceses gozaram de uma vantagem significativa em relação aos seus vizinhos ingleses, baseada na experiência e reputação superiores nas longas navegações oceânicas. Em Portugal, o nome de Antão Corso, "escorses", é dado a conhecer a D. João III pelo capitão da fortaleza portuguesa de Ternate em 1544 por ocasião da chegada de navios espanhóis às Molucas, como tendo realizado previamente a viagem àquelas ilhas. Na tripulação encontrava-se, uma vez mais, o elemento português: um marinheiro natural de Vila Franca, o qual prontamente desertou da armada para se entregar ao capitão da ilha de Ternate, ao qual prestou informações sobre o piloto escocês.
Um piloto particularmente bem sucedido neste período foi Simão Fernandes. Natural da ilha Terceira, casou em Inglaterra e aí serviu a Coroa inglesa nas décadas de 1570 e 1580. Já no reinado de D. Sebastião, em 1576, acumulava os cargos de piloto-mor e mestre do galeão da Coroa inglesa Tiger, de c.200 toneladas, onde também viajava uma das figuras históricas da marinha inglesa: Sir Richard Grenville, célebre capitão que morreu após um combate épico nos Açores entre o seu galeão, o famosíssimo Revenge, e uma armada luso-espanhola de mais de 20 navios. Em 1580, Simão Fernandes, terá realizado uma viagem de reconhecimento à Nova Inglaterra na América do Norte, enviado pelo navegador Sir Humphrey Gilbert. Cinco anos depois, encontrava-se a navegar nas Caraíbas, mestre a bordo do Lion, navio-almirante da expedição de Grenville à efémera colónia inglesa na costa norte-americana (ilha de Roanoke, na actual Carolina do Norte).
Mas Simão Fernandes não se limitou sequer à condução de navios e expedições da Raínha: foi mais longe, participando como um dos promotores na organização da expedição de 1587 à mesma colónia inglesa para garantir o seu financiamento. Foi considerado um dos homens de confiança de Sir Francis Walsingham, secretário de Estado da raínha Isabel I. Alvo da animosidade de Sir Richard Grenville durante a expedição de 1585, contou no entanto com o apoio do mercador-colonizador Ralph Lane junto de Sir Walter Raleigh, capitão e escritor muito próximo da Raínha. Porém, tanto quanto se sabe, nem um nem outro voltou a viajar com Grenville.
E, como seria de esperar, havia possivelmente outro português a bordo da expedição: mais do que incómoda, esta situação tornara-se perigosa numa altura em que se abriam hostilidades no mar entre Espanha e Inglaterra, confirmando os piores presságios. Iniciava-se a época das grandes armadas, em confronto pelo domínio dos mares.
Diário de Leitura
Fontes:
Archivo General de Simancas (Valladolid), secção Estado e Guerra Antigua
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa), secção Corpo Cronológico
Bibliografia:
La Batalla del Mar Océano: Corpus Documental de las Hostilidades entre España e Inglaterra (1568-1604), (Madrid, 1988-1993) 3 vols.
As Gavetas da Torre do Tombo, ed. A. da Silva Rego, Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1960-1977. 12 vols.
Mollat, Michel, "Passages Français dans l’Océan Indien au temps de François Ier", separata de Studia, Lisboa, 11 (Janeiro de 1963).
Quinn, David Beers (ed.), The Roanoke Voyages, 1584-1590, London: The Hakluyt Society, 1955. 2 vols.
Wright, Irene A. (ed.), Documents concerning English Voyages to the Spanish Main, 1569-1580, London, The Hakluyt Society, Second Series, vol. LXXI, 1932
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