A expansão portuguesa no Norte de África foi animada desde o início pelo ideal religioso mas também por razões práticas, como primeira linha de defesa para a navegação no Atlântico e ainda como entreposto capaz de alimentar o reino carenciado em trigo. Ao longo de mais de cem anos, diversos vultos importantes da nossa História desembarcaram nas areias marroquinas, desde o Infante D. Henrique, D. Afonso V, vários Duques de Bragança, Camões, D. António, Prior do Crato e, mais famoso de entre todos, D. Sebastião. A intervenção pessoal de dois monarcas delimita o período de ouro da presença portuguesa em Marrocos: tudo começou na conquista de Ceuta (1415) com D. João I, o vencedor de Aljubarrota, e muito acabou na derrota de Alcácer-Quibir com D. Sebastião, o Desejado (1578).
Sob o signo da Cruz: Triunfo e Tragédia nas Areias de Marrocos
Com o aval da Igreja e dos Papas, durante todo séc. XV e até ao início do séc. XVI (1513), os reis portugueses enviaram várias grandes armadas para conquistar os lugares marítimos estratégicos. É em resultado de uma destas campanhas, em 1437, que o infante D. Fernando (Infante Santo) é feito prisioneiro, após tentativa falhada de tomar Tânger pelo infante D. Henrique, seu irmão. Aquele ficou refém dos muçulmanos, sendo depois levado para Fez, onde acabou por morrer nas masmorras em condições deploráveis, 6 anos mais tarde. Mais tarde, Alcácer-Ceguer (1458), Arzila e Tânger (1471) acabaram por ser tomadas pelos portugueses.
Em simultâneo, neste período a costa marroquina foi sendo pontuada de poderosas fortalezas, verdadeiros alicerces do império. Os arredores dessas fortalezas tornaram-se para várias gerações de soldados e oficiais, homens simples e fidalgos, no principal campo de treino militar onde recebiam o seu baptismo de fogo antes de servirem na Índia. Vários grandes cercos movidos por inumeráveis exércitos marroquinos puseram à prova a capacidade de resistência das praças portuguesas, mas apenas caíu a de Agadir em 1541, sendo a mais isolada, bem a sul das restantes. Fruto destes combates intensos escreveram-se muitas páginas heróicas nas crónicas e memórias históricas, descrevendo as difíceis situações experimentadas no interior das muralhas assediadas, assim como a vida quotidiana, marcada pelo comércio e diplomacia com os diversos chefes locais que dividiam entre si o poder naquela região.
As poucas bases navais fora do domínio português serviram de refúgio a piratas e corsários, em Salé por exemplo, que enxamearam as costas portuguesas do Algarve ao Minho, atacando também as ilhas, durante mais de 200 anos, até ao séc. XVIII, perseguindo a navegação portuguesa e as populações do litoral, saqueando e fazendo cativos para serem resgatados a peso de ouro.
Em 1550, depois de prolongado debate com várias personalidades da Igreja, políticos e militares D. João III ordena o abandono das fortalezas de Safim, Arzila e Alcácer-Ceguer, sob o efeito de uma crise económica que não pára de aumentar.
Com D. Sebastião, a grande derrota de Alcácer-Quibir (1578) deixa o reino órfão, cujo destino foi selado pelo avô, seu sucessor, o idoso Cardeal-
Rei D. Henrique que, durante o seu breve reinado se decidiu pelo favorecimento do pretendente mais forte, Filipe II de Espanha, afastando os seus mais sérios candidatos ao trono, a duquesa D. Catarina de Bragança e D. António, Prior do Crato. Seguiram-se 60 anos de governo dos reis espanhóis em Portugal, findos os quais a principal fortaleza, Ceuta, permaneceu nas mãos de Espanha por decisão da própria guarnição.
O declínio da política africana continuou: Tânger foi oferecida à Coroa inglesa em dote pelo casamento de D. Catarina de Bragança com o rei Carlos em 1662 e pouco mais de cem anos depois, deu-se o abandono de Mazagão, última fortaleza cuja população foi transferida por ordem do rei em 1769 para o Brasil.
Bem se vê que a História de Portugal se jogou por várias vezes no reino muçulmano mais ocidental de África. Os laços históricos continuam visíveis, depois de séculos de confronto, comércio e navegação. Nos nossos dias, a bandeira de Ceuta ainda continua a ser o brasão de Portugal, embora com menos uma torre na bordadura para manter a diferença heráldica em relação ao original português. Nos nomes das ruas da cidade, muitos portugueses são evocados.
D. Sebastião: de Desejado a Desaparecido e "o naufrágio de um tamanho reino"
Em 1554, no dia de São Sebastião nasce o rei baptizado com o mesmo nome, apelidado à nascença de "Desejado", pois era o único herdeiro directo do trono português, sobre o qual repousavam as esperanças de todo um povo. Aclamado rei com pouco mais de três anos de idade, após uma sucessão fatal de mortes na família real (os príncipes seus pais e o rei D. João III, seu avô), foi desde cedo alvo de fortes pressões políticas opostas, ora de Espanha, ora da poderosa Ordem dos Jesuítas, enquanto o reino era regido ora pela sua tia-avó D. Catarina de Habsburgo ou pelo seu tio-avô, Cardeal D. Henrique.
Aos 14 anos de idade, completados em 1568, foi proclamada a sua maioridade. Desde esta data, o ambiente de intriga fez com que se afastasse abertamente dum e doutro, aderindo ao partido dos "validos", jovens nobres da sua idade, temerários e exaltados, sempre prontos a seguir as suas determinações. A educação do novo rei esteve a cargo do velho aio, D. Aleixo de Meneses, recebendo por mestres o humanista jesuíta Luís Gonçalves da Câmara e o matemático Pedro Nunes. Desinteressou-se dos estudos, manteve-se apaixonado praticante de desportos violentos, como a caça de voltaria e de monte.
De saúde precária, D. Sebastião demonstrou na sua juventude duas grandes paixões: a guerra e o zelo religioso. Passou à História como Defensor da Cristandade, mas a realidade é que o seu reinado decorreu sob o signo da decadência. D. Sebastião iniciou o seu reinado em crise e assim o terminou. A sua época anunciou o final do século de ouro português. Depois das prósperas navegações de Expansão e Descobrimento, Portugal mergulhou numa grave crise financeira, o comércio tornou-se difícil e a vida económica, outrora próspera, ficou estrangulada. No Oriente, a situação política e militar degradava-se rapidamente. Momento difícil, sendo o próprio país crescentemente assediado por vagas de ataques por parte de corsários Protestantes franceses e ingleses.
Neste período, a Coroa adoptou novas opções imperiais, procurando descentralizar a administração no Oriente e abandonando o monopólio do comércio. No Brasil e em África prosseguiam as missões de colonização e a procura de metais preciosos. Foram tomadas algumas medidas enérgicas com vista à protecção das frotas mercantes portuguesas que, vindas do Brasil, Mina, ou Guiné, eram atacadas pela pirataria anglo-francesa; com o mesmo intuito, procedeu-se à fortificação da costa alentejana e do litoral algarvio, erguendo-se, nesta altura, uma rede de fortalezas traçadas pelos melhores arquitectos da época. No que se refere à política externa D. Sebastião manifestou continuado desprezo pelas iniciativas diplomáticas que visavam encontrar-lhe uma esposa (Margarida de Valois, Isabel Clara de Habsburgo, Maximiliana da Baviera, etc.), pelo que não teve descendência.
Os seus aios e preceptores incutiram-lhe um espírito religioso e militar muito determinado. De carácter influenciável e entusiasta, dividia o seu tempo pelas caçadas, pelos exercícios religiosos e pela leitura de livros de história, principalmente da história portuguesa. Equitação, torneios a cavalo e a pé. O seu grande prazer era desafiar o perigo e procurar a aventura. No Inverno ia para Sintra, no Verão para Salvaterra e Almeirim e em dias de mau tempo agradava-lhe embarcar nas galés saindo da barra de Lisboa para contemplar, da popa dos navios, o mar embravecido. O seu celibato, que desesperava todos à sua volta, devia-se aparentemente a um forte espírito religioso que lhe fazia ver o ideal da vida humana na castidade espiritual. Recusou por isso muitos projetos matrimoniais que lhe eram regularmente propostos pelas principais Coroas europeias.
No entanto, desde 1572, a passagem a Marrocos tornara-se um objectivo explícito do rei, apoiado pela jovem nobreza do reino, envolvido de uma forte componente ideológica de Cruzada. O rei terá mesmo pensado em passar à Índia, tendo sido prontamente dissuadido pelos seus conselheiros mais próximos. Mas em Agosto de 1574 embarcou secretamente para África, sem aviso prévio. Houve grande preocupação quando se soube do seu desaparecimento. Finalmente apareceu uma carta régia, em que participava a sua expedição, nomeando regente do reino na sua ausência o cardeal D. Henrique. As pessoas mais autorizadas pediram repetidamente o regresso do rei, mas D. Sebastião só regressou porque nem em Ceuta, nem em Tânger, encontrou ocasião de combater.
O momento é oportuno para a vontade do rei: obtém a aprovação do Papa para esta guerra e, aproveitando o clima de guerra entre os príncipes mouros, decide apoiar a facção de Muley Mohamede, exilado em Portugal. Voltaram a ouvir-se opiniões contrárias às do rei, tendo como fundamento o perigo de a sucessão recair em Filipe de Espanha na hipótese possível da morte do rei em Marrocos, suplicando-lhe que ao menos aguardasse o tempo suficiente para deixar príncipe herdeiro jurado antes de sua partida. O Cardeal D. Henrique recusa-se a ficar com a regência do reino para tentar demovê-lo. Mas D. Sebastião não quer ouvir conselhos. Intransigente na sua vontade de voltar a África, não parou até ter reunido apoios suficientes.
A decisão controversa e fatal de uma grande campanha em África foi tomada num clima de exaltação nacional, num fervor guerreiro e religioso, em meio a uma decadência generalizada: um autor contemporâneo escreveu: ...passe (Vossa Alteza) a África, e tome-a, e triunfe dela, e torne com despojo a descansar em Lisboa. Outro poema publicado em Portugal no ano seguinte ao da batalha de Lepanto, a maior vitória naval das potências católicas contra a armada turca no Mediterrâneo, celebrava em verso heróico a glória da expansão da fé. Em 1573, o Papa Gregório XIII ofereceu a D. Sebastião uma seta de ouro, simbolizando a arma que tirou a vida ao santo mártir S. Sebastião. A imagem da seta encontra-se ainda hoje visível no brasão municipal da vila de Almeirim, onde foi oficialmente recebida. Assim legitimada pela Igreja de Roma, esta intervenção militar numa escala sem precedentes tornava-se numa guerra considerada justa e vantajosa em serviço de Deus e honra da monarquia, para atalhar o avanço do inimigo Turco. Em 1577, D. Sebastião ordenou a reocupação da fortaleza de Arzila.
Recrutaram-se no reino milhares de homens sem experiência nem treino adequado maioritariamente indisciplinado. As poucas tropas veteranas vieram da Alemanha, Flandres e Espanha. Já o núcleo de veteranos e nobres equipava-se com um luxo completamente impróprio para uma expedição militar, transportando criados, tendas e bagagens enormes. Nas palavras de um historiador contemporâneo, os portugueses não pensavam que hiam a pelejar mas a hum vencimento certo, triumpho e ostentação de seu poder e estado e levando comsiguo suas riquezas. Contou-se mais tarde em Lisboa que no final do combate se encontraram dezenas de guitarras portuguesas dispersas pelo campo de batalha.
O rei trouxe consigo a espada e escudo de D. Afonso Henriques que se guardavam no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, para acompanhá-lo em África, embora, ironicamente, as tenha deixado a bordo de um navio em Arzila.
A imensa armada que em 1578 transportou o exército a Arzila, no Norte de África, reunia entre 600 a 1.300 navios de todos os tipos e portes, provenientes dos portos nacionais e do estrangeiro. Desembarcando em Arzila, o rei e os deus homens dirigiram-se por terra a Larache, primeiro grande objectivo a conquistar. Próximo de Alcácer-Quibir, a 4 de Agosto de 1578, os exércitos adversários encontraram-se e defrontaram-se sob um calor tórrido. Os portugueses, com uma estratégia mal definida, lançaram ataques descoordenados embora com muito ímpeto. O rei embrenhou-se numa das últimas cargas de cavalaria e desapareceu por entre as hostes infindáveis de mouros. Se a princípio a batalha pareceu quase ganha, o que dela resultou foi uma estrondosa derrota que abalou a monarquia portuguesa. A conquista final de Marrocos significou a perda da vida do rei na grande campanha de 1578, arrastando consigo para a morte perto de 8.000 homens, entre os quais se contava parte considerável da nobreza.
Em meados de Setembro, contavavam-se perto de 9.000 prisioneiros. Sobre a derrota, alguns testemunhos culpavam os conselheiros do rei que não tinham talvez aquela prática da guerra que era preciso de que é causa aquela infeliz resolução de ir para os braços e casas dos inimigos sem considerar em tantos inconvenientes quantos razoavelmente se deviam considerar.
Mais uma vez, os contactos entre portugueses e marroquinos foram preciosos para salvar vários prisioneiros. D. António, Prior do Crato, filho bastardo de D. João III, depois de aprisionado pelas tropas de Al-Mansor, beneficiou dos seus contactos com membros da influente comunidade judaica em Tânger, tendo sido um dos primeiros cativos a ser libertado, mediante o pagamento do seu resgate por um judeu. O resgate foi pago um judeu de Fez, em reconhecimento de favores prestados por D. António quando esteve por governador de Tânger, em 1574 e muitos outros cativos da batalha ficaram aposentados na judiaria de Fez, tendo os judeus locais financiado milhares de cruzados de crédito a uma comissão de fidalgos cativos, os quais vieram a Portugal para obter o resgate de quase uma centena de nobres que tinham sido aprisionados.
De imediato, nasceu a célebre polémica relativa ao desaparecimento de D. Sebastião, sobre se escapara vivo da batalha, ou se morrera nela combatendo. Na realidade, com esta imensa acção imprudente, o rei dera início a uma grave crise política sobre a sucessão do reino. O suposto corpo de D. Sebastião, assim como os prisioneiros mais importantes, foi resgatado por Filipe II rei de Espanha por somas consideráveis, embora o corpo do rei só tenha sido trazido de Ceuta em 1582 e enterrado na igreja do Mosteiro dos Jerónimos em Belém, já reconhecido como seu legítimo sucessor, sob o nome de D. Filipe I de Portugal.
Mas, ao desaparecer D. Sebastião (morto, diziam uns, escondido, garantiam outros) nasce uma das figuras míticas da nossa História. Para a História ficou uma trágica aventura que um dia o rei "menino", com apenas 24 anos, quis por força tornar realidade. Apesar do desastre de 1578, a imagem monarca ganhou uma aura mística e o país não voltaria ser o mesmo, esperando desde então pelo seu messias lusitano em dia de nevoeiro.
A jangada soçobrou, meteu muita água e ficou sem timoneiro, mas não afundou. Por pouco...
P.S.
Viagem no Tempo
Fiquem os leitores a saber que para melhor se ambientarem a este tema, poderão informar-se aqui sobre um inovador percurso turístico-cultural a Marrocos no início do próximo mês de Novembro, numa excursão que irá visitar os locais de tantos acontecimentos acima descritos. Brevemente partirão à redescoberta da nossa história para lá do reino, mergulhando num ambiente exótico e uma cultura milenar que encantou tantos portugueses da Era dos Descobrimentos.
Diário de Leitura:
José de Castro, D. Sebastião e D. Henrique (Lisboa, 1942).
Luciano Ribeiro (ed.), Colectânea de documentos acerca de D. Sebastião, separata de Studia, Lisboa, n.º 5 (Janeiro 1960)
Francisco de Sales Mascarenhas Loureiro (ed.), Jornada del-rei Dom Sebastião a África. Crónica de Dom Henrique (Lourenço Marques, 1570 (reed., Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1978)
J. M. de Queiroz Veloso, D. Sebastião, 1554-1578, Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1935.
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