quarta-feira, setembro 10, 2003

Mimos e Memórias de um Vice-Rei na Índia

Verão de 1546. Combate-se em muitas frentes por toda a Índia, mas em nenhum lugar tanto como no Norte, em Diu, à entrada do Golfo de Cambaia. Pela segunda vez desde 1538, um poderoso exército guzarate submete a fortaleza portuguesa a um cerco impiedoso que irá fazer história. Os assaltos sucedem-se, com dezenas, centenas de mortos de cada vez que os adversários se encontram cara a cara. Passam-se 5 meses e tanto sitiados como sitiantes não ultrapassam por muito tempo as espessas muralhas, cada vez mais arruinadas, que os separavam. Com extrema dificuldade, pequenos navios à vela lá vão socorrendo de vez em quando os portugueses com algumas munições, pão e homens, mas os combates continuavam. Desgastados, feridos, sem comida e com os canhões silenciados por falta de pólvora, os defensores não irão suportar as investidas por muito mais tempo. Mas o mar que lambe os baluartes desta fortaleza marítima traz até eles a força que já ia faltando. Finalmente, no dia 11 de Novembro, um militar navegador e erudito homem de ciência, D. João de Castro, alcança uma vitória decisiva, desfazendo assim o delicado equílibrio bélico a favor dos portugueses. Em reconhecimento dos seus serviços, e D. João de Castro é nomeado Vice-Rei do Estado português da Índia, por entre grandes celebrações festivas com que é recebido em Goa, ao ponto de reconstituírem numa fortaleza reduzida à escala as principais acções que resultaram na vitória final. Dias felizes para muitos, mas na sua mente recordaria ainda as palavras de D. Álvaro, seu filho, comunicando-lhe a morte do irmão, D. Fernando, durante o terrível cerco: "Meu irmão, que Deus haja, achei morto; é certo que Vossa Mercê perdeu um filho e eu um irmão para muito sentir, mas nós havemos de morrer e o manjar da Guerra são homens e os melhores" (carta de D. Álvaro de Castro a D. João de Castro, Diu, 27 de Agosto de 1546). Recordaria decerto a dor e a alegria de ter cumprido honradamente o seu dever, enquanto perdia alguém precioso. Assim era para muitos a vida na Índia naqueles meados do séc. XVI.

Durante o seu mandato (cumprido entre 1546 e 1548), o célebre D. João de Castro redigiu e recebeu vasta correspondência. Parte desta papelada dirigia-se aos seus dois filhos, D. Fernando e D. Álvaro. Nestas cartas, que chegaram aos nossos dias, as agitadas penas deitaram rios de tinta sobre os mais diversos assuntos. Para além da perspectiva puramente familiar, estão reflectidas as experiências de vida de cada um, os seus verdadeiros sentimentos e opiniões a respeito de personalidades e eventos contemporâneos. Tal sinceridade é rara nos documentos históricos que se conhecem para vultos desta importância. Certa carta sobreviveu, pelos caprichos da História, para nos lembrar um mau momento, mas que fica como exemplo de como as grandes personalidades são mesmo feitas de carne e osso, glórias àparte e se expressam como todos nós.

Escrevendo ao seu filho ainda durante o cerco de Diu, D. João de Castro aconselha severas medidas de represália contra os prisioneiros inimigos (a fazer lembrar os tempos de Afonso de Albuquerque, o Terribil) e desespera com a exasperante ineficácia e cobardia de certos capitães portugueses a quem se confiavam missões de reforço à guarnição da fortaleza sitiada. As palavras são de uma extrema dureza, inigualáveis quanto à expressão do descontentamento: "D. Álvaro, filho: …Parece-me muito bem mandardes degolar quantos Guzarates e Mouros se tomam, e eu outro tanto faço cá. …E estou para me enforcar dessas caravelas lá não serem, e merda para elas e para os que vão dentro, e para Gomes Vidal, porque são homens de merda que não sabem navegar senão para tomarem portos e comerem pão fresco e rabãos e saladas, e andarem às putas; e dizei-o assim ao capitão e a Vasco da Cunha e a Fr. Paulo, porque já não hei-de falar senão desta maneira; e merda para mestre Diogo e para quantos apóstolos vêm de Portugal, porque eu sirvo muito bem El-Rei nosso senhor, e eles são grandes hipócritas, que querem haver bispados para darem renda a seus filhos e terem mancebas gordas" (D. João de Castro a D. Álvaro de Castro, Baçaim, 14 de Outubro de 1546)
Sentimentos de uma personalidade austera, confirmados aliás nas palavras do cronista da Índia Diogo do Couto, o qual narra que no ano seguinte, "O Governador [D. João de Castro] depois de despedir seu filho D. Álvaro de Castro, ficou dando ordem, e despacho a algumas cousas. E, como além de ser muito Cavaleiro, era fonfarrão, e roncador, sabendo que andava gente de Cambaya naquela Cidade, que forçado havia de escrever lá novas, deitou fama que havia de ir até à Cidade de Amadabá, e tomar ElRei às mãos, e que o havia de espetar, e assar vivo. E mandou fazer na ferraria (que ele muitas vezes visitava) uns espetos de ferro mui grandes, dizendo «que eram pera assar ElRei, e os seus Capitães»." (Diogo do Couto, Década 6.ª). Nada mais, nada menos.

Já as cartas posteriores, sobretudo após o final do cerco são bem mais pacíficas, lembrando e confirmando com o seu agora filho único o envio de guloseimas, autênticos privilégios, fossem doces de "açúcar rosado", jarras de mel e caixas de marmelada ou mesmo umas apetecíveis perdizes engaioladas e "algumas amostras de vinho" (cartas de D. João de Castro a D. Álvaro de Castro, 1 e 3 de Novembro e 26 de Dezembro de 1546). A natural preocupação paterna pela saúde de D. Álvaro, convalescente de uma doença algo prolongada, é expressada nos seus conselhos para que "vos deixeis estar comendo e bebendo e levando muito boa vida".
Apesar das críticas ao seu feitio por vezes irascível, as reais capacidades de D. João de Castro eram plenamente reconhecidas pelos seus pares. Não foi excepção à regra um dos filhos de Vasco da Gama, D. Estêvão, tendo escrito ao rei: "Bem sey que pera sondar barras e debuxar saberá muy bem fazer", (carta a D. João III, Goa, 25 de Outubro de 1541).

Na verdade, basta um relance às suas "Taboas", isto é, roteiros de navegação elaborados a bordo de viagens no Oceano Índico, para admirarmos a qualidade das suas observações, dignas do seu mestre, o grande matemático Pedro Nunes.
As suas várias obras merecem uma leitura. Homem culto e polivalente, foi um dos pioneiros do experimentalismo científico em Portugal, levando à prática inúmeras observações. Da astronomia nautical à hidrografia e navegação, os seus estudos não impediram as suas prestações militares e navais. Enquanto navegava ao serviço da Coroa, D. João de Castro fazia-se acompanhar de cadernos onde tomava os seus apontamentos, ilustrados também por si, hábito que incutiu ao seu filho D. Álvaro.
O seu período de glória como Governador da Índia é sobejamente conhecido através das várias páginas de obras que o celebrizaram. Alguns episódios tornaram-se quase lendários. De facto, não é qualquer pessoa que empenha as próprias barbas para financiar a reedificação de uma fortaleza (Diu) após um monumental cerco de vários meses, ganhando o respeito de toda a população de Goa; e talvez não tenha sido puro acaso que tenha expirado nos braços de S. Francisco Xavier, apóstolo do Oriente. Episódios verídicos na carreira de um homem notável. Uma vida plena, que bem se pode resumir nas suas próprias linhas: na dedicatória do seu "Roteiro de Goa a Diu" (1538), Castro descreve as suas andanças marítimas: "...ora pelejando com os ventos, ora defendendo-me dos mares, às vezes correndo as costas, e outras caminhando por grandes e espantosos perigos".
Castro, homem prático e consciente da importância decisiva do poder naval para Portugal, não deixou de lançar um aviso pertinente:

"...a todos seja notório que os muros da Índia sam esta armada de Vossa Alteza" (carta de D. João de Castro, Diu, 1546)

A defesa da Índia deveria jogar-se preferencialmente no mar. Uma lógica que reconhecia neste elemento a superioridade efectiva e não tanto em terra, onde eramos gradualmente inferiores em número e organização, quase que resumindo as iniciativas militares a acções defensivas.
Ironicamente, se tivesse vivido mais alguns anos teria visto a corrupção e decadência, que já antes corroíam os alicerces do Estado da Índia, alastrar a partir justamente da segunda metade do séc. XVI, demarcando-se definitivamente da época de ouro portuguesa no Índico.

Um grande marítimo português, portanto, daqueles que fazem flutuar esta jangada de pedra...

P.S. Existe um outro D. João de Castro debaixo de água, nos Açores: recomendo visita ao rico banco submarino do mesmo nome. Homenagem merecida em paisagem magnífica. O autêntico D. João de Castro jaz no convento de São Domingos, em Benfica - local outrora ermo e isolado - na antiga capela dos Castros.


Diário de Leitura:

Cartas Trocadas entre D. João de Castro e os Filhos (1546-1548), introdução e notas de Luís de Albuquerque, Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses - Ministério da Educação, 1989

Diogo do Couto, Décadas, selecção, prefácio e notas de António Baião, Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1947

Obras Completas de D. João de Castro, Coimbra: Academia Internacional de Cultura Portuguesa, 1968-1981; 4 vols.

Vitorino Magalhães Godinho, Mito e Mercadoria: Utopia e Prática de Navegar, sécs. XIII-XVIII (Lisboa, 1990)

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