quarta-feira, fevereiro 25, 2009

A "Vinda dos Ingleses" a Portugal em 1589 (II)

Parte II - O Regresso do "Pobre Rei" D. António

Infantaria inglesa da época isabelina em marcha. Gravura da obra de John Derrick, Images of Ireland (1581).

Deixando em Peniche os soldados doentes e feridos e 3 navios para assegurar uma eventual retirada, o General Sir John Norris, D. António de Portugal e o conde de Essex iniciaram a marcha para Lisboa com menos de 6.000 homens e 44 cavaleiros, mas desprovidos de artilharia. Essex e o Coronel Sir Roger Williams comandavam a vanguarda, enquanto D. António e o seu filho viajaram na retaguarda da formação protegidos pela cavalaria. Sob um sol escaldante de Primavera, demoraram 6 dias para percorrer os 80 km de caminho sinuoso até Lisboa. No dia 28 de Maio, D. António e as tropas inglesas chegaram à Lourinhã, enquanto as tropas espanholas se retiraram de Torres Vedras para Enxara dos Cavaleiros, mantendo somente uns cavaleiros "sempre à vista do inimigo" e enviando batedores por "todas partes". A estratégia defensiva das forças ocupantes espanholas era prudente, deixando o inimigo desgastar-se na marcha para Lisboa e envolvendo o mínimo de confrontos.

D. António entrou pouco depois em Torres Vedras a 29 de Maio após a retirada da guarnição espanhola e desfilou debaixo de um "pálio" (espécie de toldo portátil) tal como faziam os monarcas nas paradas, procedimento que se repetiu em todas as povoações no seu caminho. Entretanto, juntaram-se-lhes frades, gente pobre e alguns fidalgos que prometiam a adesão de muitos mais apoiantes portugueses.

Contudo, após 8 anos de ausência do pretendente português e da dura repressão espanhola sobre nobres, religiosos e populares, a esperada adesão popular a D. António não se concretizou. O sangrento episódio do rei da Ericeira em 1585 criara tanto medo na população que muitos temiam mais "serem prezos por estes cazos que não pella Santa Inquisição". Só no início de 1589, o rei Filipe II (D. Filipe I de Portugal) ordenara a deportação de 70 fidalgos suspeitos. E durante o cerco de Lisboa movido pelas tropas inglesas seria degolado um irmão do Barão de Alvito por suspeitas de conspiração e o Conde de Redondo encarcerado no castelo de São Jorge. O facto de D. António se fazer acompanhar de uma hoste de "hereges" Protestantes, ainda que libertadores, também comprometeu o pretendido apoio popular.


Robert Devereux, 2.º conde de Essex, fidalgo aventureiro e um dos cortesãos favoritos da Rainha Isabel I, acompanhou a expedição de Sir Francis Drake e D. António a Portugal, integrando o contingente militar infringindo a vontade da Rainha que ordenou o seu regresso logo após a notícia da sua partida.


A notícia do desembarque inglês provocou o pânico em Lisboa. Nas primeiras horas da manhã, os habitantes abandonaram a capital com os seus haveres, desembolsando fortunas pelo aluguer de simples carroças e quaisquer barcos rumo ao Barreiro e ao Montijo.

No arraial inglês, a falta de mantimentos agravou-se com o cumprimento das ordens do General Norris, proibindo qualquer roubo a portugueses, o que obrigou os ingleses a comer "muitas imundicias... e muitos delles se embebedavão, por aver muito vinho", de que muitos "adoecião e morrião". Na noite de 30 de Maio, os ingleses instalaram-se em Loures. Chegadas aqui, as tropas invasoras sofrem a primeira investida das forças espanholas durante quase 2 dias, causando algumas baixas e fazendo prisioneiros, cujo interrogatório confirma o estado debilitado dos ingleses.

No dia 31, o campo espanhol transfere-se para as imediações da ponte de Alcântara, prevendo a eventual subida do Tejo pelos navios de Drake, enquanto as religiososas dos conventos extra-muros da Esperança, Odivelas e Santos-o-Novo são acolhidas em Lisboa, bem como a população residente nas numerosas quintas dos arrabaldes. O pavor dos invasores hereges levou algumas religiosas a regressarem a casa das respectivas famílias, enquanto outras provocaram escândalo ao refugiarem-se nas celas e nos dormitórios dos frades no mosteiro de São Francisco, dando lugar a boatos maliciosos e à perturbação dos ofícios religosos.

Sir Francis Drake e a armada inglesa em Cascais

Fortificações de Cascais no século XVI: em cima, gravura de Georg Braun representando a torre joanina e em baixo a fortaleza filipina hoje em dia, construída sobre a primeira e cujo alcaide espanhol se rendeu às forças inglesas de Drake em 1589.

Terça-feira, dia 30 de Maio, a baía de Cascais é enquadrada pela armada liderada por Sir Francis Drake. Após um rápido desembarque defronte do Mosteiro de Santo António (actuais Salesianos do Estoril), 300 soldados ingleses assumiram a vanguarda de um contingente de 1.500 homens que cercou e tomou a fortaleza de Cascais, apoiados pela artilharia da armada.

Simultaneamente, um piloto português desembarcado do Revenge, navio de Drake, convenceu a população local a acolher os invasores e apoiar D. António na sua luta pelo trono português. O alcaide espanhol da fortaleza de Cascais rendeu-se devido às notícias comunicadas pelo seu capelão (padre do convento de Santo António do Estoril) e depois de Drake ter comunicado que Lisboa também se entregara. O desafortunado alcaide espanhol retirou-se num barco a remos e a sua guarnição abandonou a fortaleza, apenas para mais tarde ser sentenciado à morte por traição e executado em praça pública na Ribeira de Lisboa.
As forças navais portuguesas encontravam-se em plena reconstrução após o fracasso da "Invencível" Armada de 1588, não intervindo na defesa de Lisboa contra a expedição inglesa de 1589. Nesta ocasião, a barra e o estuário do Tejo foram defendidos por navios da Coroa de Espanha. Gravura de Frans Hogenberg sobre desenho de Georg Braun, no grande atlas urbano de Abraham Ortelius, Theatrum Orbis Terrarum (1598).

No Tejo,as defesas a ultrapassar pela armada consistiam na esquadra de 12 galés de D. Alonso de Bázán (irmão do falecido Marquês de Santa Cruz, idealizador da "Invencível" Armada de 1588 e falecido em Lisboa no início desse ano), a fortaleza de São Julião da Barra substancialmente ampliada e a plataforma de artilharia erguida no areal da Cabeça Seca (Bugio).

Planta hidrográfica da barra de Lisboa topografada em 1589 com indicação das trincheiras feitas pelos defensores espanhóis quando da "vinda dos ingleses". Alexandre Massai, "Discripcaõ Relaçaõ do Reino de Portvgal Segvndo Tratado", 1621 (Museu da Cidade, Lisboa).

Na mesma noite em que as forças de Drake tomaram a fortaleza de Cascais, este soube da chegada do General Norris e de D. António aos subúrbios de Lisboa.



O Inimigo às Portas de Lisboa: o breve cerco da capital
Após a longa marcha desde Peniche, D. António e as forças inglesas alojaram-se nas colinas dos Moinhos de Vento (Príncipe Real) e do Bairro Alto, onde permaneceram durante os breves mas intensos combates para entrar nos muros da Lisboa. Reconstituição em Campanhas do Prior do Crato: entre reis e corsários pelo trono de Portugal, 1580-1589 (2005) ©

Na manhã de 1 de Junho, dia de Corpo de Deus, Lisboa não celebrou a habitual procissão do Santíssimo Sacramento. Concentrando forças e precavendo-se de uma eventual sublevação popular, o exército espanhol coordenado pelo Vice-rei Alberto de Áustria e comandado pelo Capitão-geral conde de Fuentes recolheu para o interior dos muros da capital, distribuindo dezenas de companhias de infantaria pelas praças de armas improvisadas em Nossa Senhora da Graça, no Terreiro do Paço e no Rossio, assim como ao longo da muralha fernandina e entulhando as diversas portas e postigas. A cavalaria portuguesa, liderada por D. Francisco Mascarenhas, conde de Vila da Horta, foi encarregue de patrulhar as ruas da cidade, prevenindo qualquer alteração da ordem. O reforço da defesa da capital foi considerável: na véspera do desembarque inglês em Peniche, Lisboa contava com 6.680 soldados, já durante o ataque às muralhas da cidade, os efectivos atingiram perto de 12.000 homens (dos quais apenas 1.000 seriam portugueses). Os defensores possuíam, assim, quase o dobro de homens das foras atacantes.

Fora de muros, na Pampulha, as autoridades incendiaram deliberadamente os armazéns de cereais e derrubaram as casas enconstadas à muralha medieval no Bairro Alto, impedindo qualquer apoio às hostes invasoras na guerrilha urbana que se antevia.

Na tarde seguinte, após um breve reconhecimento dos bairros abandonados nos arrabaldes da capital, as tropas inglesas entricheiraram-se no casario entre os Moínhos de Vento (actual Rua da Escola Politécnica/Príncipe Real) e em Santa Catarina até à Esperança e Boavista, tomando posição estratégica no alto de uma das colinas de Lisboa facilmente defensável dominando grande parte da cidade e beneficiando de bons alojamentos, situando-se numa zona de eleição da nobreza com diversas quintas e solares. O General Norris estabeleceu o quartel-general improvisado na quinta dos Soares da Cotovia (actual R. da Escola Politécnica, onde hoje se ergue o edifício da Imprensa Nacional). Porém, os defensores espanhóis mantiveram os invasores debaixo de mira e os alojamentos ingleses foram alvo dos tiros da artilharia do castelo de São Jorge no lado oposto do vale, cujos disparos foram recebidos com aplausos e demonstrações de desprezo pelos sitiantes. Um dos tiros atingiu em cheio o quartel-general inglês "salpicando" D. António de cal e pedras, obrigando-o a escolher refúgio seguro mais abaixo, na Calçada do Combro.



Em São Roque e em Santa Catarina ocorreram os combates mais intensos na tentativa de assalto das tropas inglesas à capital. Actualmente, algumas ruínas da muralha medieval de Lisboa contíguas às antigas Portas de Santa Catarina encontram-se preservadas (actual Espaço Chiado, próximo do Teatro da Trindade).


Na madrugada de 3 de Junho, com apenas 200 portugueses reunidos a D. António desde o o desembarque em Peniche, o General Norris inicou o ataque aos muros da capital com uma incursão na igreja do Loreto no Bairro Alto, contígua à muralha fernandina. Aproveitando a baixa-mar, as tropas inglesas aproximaram-se da parte mais vulnerável da muralha na sua extremidade à beira-rio, enconstada ao imponente palácio dos Corte-Reais (ao Corpo Santo, e destruído no terramoto de 1755), propriedade do controverso D. Cristóvão de Moura. O assalto foi impedido, ironicamente, pela pequena nau espanhola María San Juan, única sobrevivente da "Invencível Armada" regressada a Lisboa, cujos tripulantes bascos puderam assim vingar a derrota do ano anterior, desencadeando um potente fogo de barragem juntamente com as galés.

Pouco depois do meio-dia, aproveitando a chegada de 500 soldados veteranos das guarnições do Porto, as forças espanholas dividiram o contra-ataque em duas frentes: pelas portas de Santo Antão saíram 500 arcabuzeiros e "piqueiros" apoiados por 3 companhias de cavalaria, que subiram a encosta da Anunciada ao longo da muralha até São Roque (actual Largo de São Roque ou da Misericórdia), enquanto um contingente de 200 "atiradores" ganhou o interior da igreja do Loreto, onde os ingleses que já tinham a porta da mesma arrombada foram repelidos pelos mosqueteiros no telhado, nas varandas e janelas da igreja de São Roque.

A luta ao redor da quinta da Cotovia (posteriormente Colégio dos Nobres e actual Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, onde ainda se encontra sepultado um importante oficial naval português contemporâneo do Prior do Crato, Fernão Teles de Meneses) revelou-se mais encarniçada, envolvendo-se as forças em luta corpo-a-corpo, depois de os espanhóis, aos gritos de "Viva elRey Dom Antonio" terem momentaneamente confundido as tropas inglesas. Desalojadas as trincheiras inglesas, a cavalaria espanhola carregou, mas as ruas estreitas limitaram as suas manobras e sofreram fogo dos atirados inimigos situados nas janelas do casario, forçando os cavaleiros a retirar com algumas baixas e atropelando a própria infantaria. Foi necessário o reforço de 200 arcabuzeiros e 50 "piqueiros" para cobrir a sua retirada. A intensidade do contra-ataque inglês, aproveitando a retirada da cavalaria espanhola trouxe os combatentes de ambos os lados envoltos de volta às Portas de Santa Catarina (actual Largo de Camões), frente às quais o conde de Essex desafiou a guarnição defensora a sair e combater. Após este breve mas intenso ocombate, ambos os lados contaram cerca de 40 mortos, entre os quais vários oficiais. Os ingleses enterraram um dos seus capitães em Santa Catarina com muitas cerimónias, enquanto os feridos espanhóis foram transportados para o Hospital Real de Todos os Santos (actual Praça da Figueira).

Contudo, durante esta acção a armada de Drake mantivera-se bem longe, não subindo o Tejo para o encontro combinado com as forças de Norris em Lisboa. Sem este apoio, a situação das tropas inglesas rapidamente se tornou insustentável. O General Norris levantou campo ao final da tarde de doingo dia 4 de Junho e retirou-se furtivamente de madrugada deixando várias fogueiras acesas para iludir os sitiados. Sem o esperado apoio popular e face aos reforço constante da cidade pelas forças espanholas através do Rio Tejo, os comandante ingleses decidiram não arriscar e prosseguiram ao reencontro de ambos em Cascais para decidirem os próximos objectivos.

Para D. António, este foi um efémero e amargo regresso, esfumando-se as esperanças de uma sublevação que o ajudaria a recuperar o trono de Portugal. Filipe II de Espanha (I de Portugal) impedira com sucesso a capital portuguesa de receber o "pobre rei" português exilado, "sem a qual (cidade) o mesmo se encontra arruinado", nas palavras de um dos participantes da expedição inglesa.

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