Piratas, Veleiros e Submarinos: a Imaginação e o Mar
Para além da sublime recriação de Herman Melville, outros seres fantásticos surgiram igualmente das profundezas dos mares, embora não necessariamente orgânicos.
O «Nautilus», o mais célebre submarino de todos os tempos, surgiu no séc. XIX no famoso romance Vinte Mil Léguas Submarinas , imaginado pelo francês Jules Verne (1828-1905) e publicado originalmente em dois volumes, entre 1869 e 1870.
A história centra-se nas aventuras vividas pelo capitão Nemo e a tripulação do submarino. Numa época imaginária, chegam notícias de uma sucessão de naufrágios misteriosos, particularmente de navios de Guerra. Os relatos dos sobreviventes fazem referência a grandes baleias. É enviado um navio de caça à baleia para pôr fim à ameaçadora presença, apenas para descobrir que, afinal, o monstro era de metal e tripulado por humanos. Construído com a forma de um peixe e equipado com um enorme esporão para afundar outros navios, o submarino era visto como um grande cetáceo, até ao dia em que o «Nautilus» recolheu os sobreviventes de um dos navios atacados. O mistério estava desvendado.
Mas estes acontecimentos têm um fundo de ingenuidade e utopia carregados de boa vontade: o capitão Nemo odiava a Guerra, por isso, dedicou-se a afundar os navios de guerra com os quais se cruzasse. Sob as suas ordens, a embarcação era uma arma destinada à vingança de Nemo contra aqueles que mataram sua família e contra os comerciantes de armas. Não foi por acaso que o primeiro submarino nuclear do mundo, (lançado em 1954 pela Marinha de Guerra norte-americana) recebeu o mesmo nome de baptismo. Curiosamente, se tivesse realmente existido, a rota imaginada do mítico submarino teria passado por duas vezes ao largo da costa portuguesa.
Um dos grandes nomes da literatura maritima, Júlio Verne foi também um dos pioneiros da onda de ficção científica. Foi nas bibliotecas de Paris que passou dias a fio entretido a reunir elementos sobre Engenharia, Geologia e Astronomia que lhe permitiram criar ambientes verosímeis em narrativas fantásticas como "Cinco Semanas em Balão" (1863), "Viagem ao Centro da Terra" (1864) e "Da Terra à Lua" (1866), numa série justamente intitulada "Voyages Extraordinaires". Estas aventuras científicas verdadeiramente inovadoras deram lugar a inúmeras adaptações cinematográficas.
Fruto da infância passada em contacto com marinheiros e navios que chegavam ao porto de Nantes, o escritor também velejou pelo Atlântico, desfrutando a sua diversão nautica nos veleiros (três) que possuíu. Mais tarde, com mais de 60 anos e longe das lides do mar, concebia novas histórias que enfeitiçavam o imaginário colectivo num gabinete com a forma da cabine do seu último iate, o «Saint Michel III».
O submarino «Nautilus», do capitão Nemo, foi apenas um dos 259 nomes de embarcações que surgiram nos 63 romances de Verne - quatro em cada cinco livros de sua autoria têm um episódio marítimo.
O Pirata Improvável
Sulcando os mares imaginários do final do séc. XVII, encontramos o «Arabella», ilustre navio protagonista das histórias do capitão Blood, médico inglês tornado pirata das Caraíbas, saído da pena de Rafael Sabatini. Mais conhecido que o texto dos seus romances marítimos são sem dúvida as imagens do "clássico" filme de piratas protagonizado por Errol Flynn (ele próprio velejador e dono de um veleiro já histórico, recentemente restaurado), no inesquecível Captain Blood. Sem dúvida, o pirata com melhor formação, respeitado e honrado tanto quanto se poderia vir a ser nesse meio. Mas a ficção é assim mesmo.
Tesouro na Ilha
Num registo diferente, algures no séc. XVIII, recordamos Long John Silver, o pirata do "pé de pau" com o papagaio ao ombro, navegando em busca de um tesouro enterrado na praia de uma ilha tropical. Robert Louis Stevenson (1850-1894) conheceu o seu primeiro sucesso com um livro que se tornou num dos paradigmas das narrativas marítimas: Treasure Island ("A Ilha do Tesouro") (1883). O pirata e o jovem Jim Hawkins seguiam a bordo do navio «Hispaniola», que o escocês Robert Louis Stevenson imaginou para a sua "Ilha do Tesouro", em que as velas são içadas para descobrir o paradeiro do tesouro do velho pirata capitão Flint, na época de ouro da pirataria. Escocês de Edimburgo, Stevenson tinha alma de aventureiro e fez longas viagens pela Europa e América. Terminou os seus dias na terra exótica que tanto o fascinou, deixando inacabado o seu último livro.
Em 1888, graças à estabilidade económica proporcionada pelos seus livros "O Médico e o Monstro", "Raptado" e "A Flecha Negra" , partiu com a família de São Francisco, nos Estados Unidos, a bordo de uma escuna alugada, a «Casco», iniciando um percurso existencial pelos mares do sul - Ilhas Marquesas e Ilhas Sociedade. "Se a «Casco» e eu sobrevivermos, dar-lhe-ei notícias em breve", escreveu em tom irónico ao amigo e escritor Henry James.
Stevenson navegou por aquelas águas a bordo de outros quatro barcos: o «Equator», um vapor do correio, o S.S. «Janel Nicoll» e o S.S. «Lubeck». Procurou entender o que via e escreveu os contos "The Island Night's Entertainments" e "In the South Seas". Conheceu as Ilhas Marshall, Salomão e Fiji e, por fim, em 1890, estabeleceu-se em Vailima, na Ilha de Upolu (Samoa Ocidental). Stevenson escreveu então que era "chefe e pai" de cinco brancos e 12 nativos. Dedicava o tempo todo à literatura e era conhecido como "tusitala" (contador de histórias). Nunca mais voltou à Grã-Bretanha. Morreu de hemorragia cerebral e jaz no monte Vaea, próximo à Apia, capital do pequeno reino insular.
quinta-feira, outubro 30, 2003
segunda-feira, outubro 27, 2003
Os Escritores e o Mar (I)
A experiência do contacto do Homem com o Mar e os mistérios das suas profundezas despertou desde sempre o fascínio na alma dos escritores. Boa parte dos relatos, sobretudo de ficção e depoimentos em primeira pessoa, investe na emoção. Ficção e realidade misturam-se com facilidade na história de vida daqueles que escreveram sobre as aventuras do Homem na misteriosa imensidão azul dos oceanos do mundo.
Género essencialmente anglo-americano, a literatura marítima tem os seus cultores e movimenta toda uma indústria editorial, fornecendo relatos de ficção e não-ficção sobre batalhas navais, relatos pessoais de almirantes e marinheiros, piratas e corsários, viagens de exploração, desastres e naufragios. Assunto não falta e o género tem os seus mestres. São escritores que fizeram dos mares uma fonte rica e inesgotável de temas para as suas obras.
O Naufrágio do Essex
A veracidade das narrativas confunde-se, por vezes, com as experiências de vida dos próprios autores. Em 1820, após o ataque inesperado de um cachalote enfurecido, o baleeiro «Essex» afundou-se num instante algures no Pacífico Norte. Nunca se imaginara que uma baleia pudesse reagir aos pescadores que a perseguiam. O que se seguiu ao naufrágio foi uma longa provação pelas águas do Pacífico: amontoados em três botes, os marinheiros navegaram durante três meses, experimentando os horrores da inanição e da desidratação, da doença, da loucura e da morte, chegando à práctica do canibalismo.
Owen Chase, primeiro-imediato e um dos oito sobreviventes do «Essex», navio que serviu de modelo para o «Pequod», em Moby Dick, escreveu um minucioso relato de 128 páginas intitulado Narratives of the Wreck of the Whale-Ship Essex (Narrativa do Naufrágio do Baleeiro Essex). O relato, escrito na primeira pessoa, dramático e de força maior porque feito com a autoridade de quem viveu os acontecimentos, foi a principal fonte de inspiração de Herman Melville (ver mais abaixo), que o leu quando tinha por volta de 20 anos. Esta obra passou a ser o mais importante documento sobre a história real do navio baleeiro.
Conhecem-se outros relatos de sobreviventes deste naufrágio, mas nenhum tão importante e detalhado quanto o de Owen Chase. No entanto, por volta de 1960, encontrou-se um livro de anotações guardado no sótão de uma residência em Penn Yan, na cidade de Nova York. Em 1980, o manuscrito chegou às mãos de um especialista da caça à baleia, o qual, depois de muita investigação, descobriu ter sido seu autor o camareiro do «Essex», Thomas Nickerson. Nickerson tinha embarcado com apenas 14 anos e encontrava-se ao leme do navio quando do ataque da baleia. Sobrevivente do ataque, voltou a Nantucket, tornando-se dono de uma estalagem. Aos 71 anos, instado por um dos fregueses aos quais narrava a tragédia do «Essex», escreveu a história que, por vias tortuosas, foi parar àquele sótão esquecido na povoação de Penn Yan, para vir a público quase 200 anos depois dos acontecimentos narrados.
Foi juntando os dados das narrativas de Chase e Nickerson e de estudos posteriores, além dos próprios, que Nathaniel Philbrick (ele próprio campeão de regatas) reuniu material para escrever In the Heart of the Sea (No Coração do Mar, Europa-América, 2003, vencedor do prémio "National Book Awards" nos Estados Unidos em 2000, categoria Não-Ficção). Nele é retratada a história do «Essex» - a sua construção, as viagens anteriores, a formação da sua tripulação para a última viagem, as relações humanas a bordo e, sobretudo, da maneira como sobreviveram ao naufrágio 8 dos 21 pescadores embarcados. O livro relata o dia-a-dia dos sobreviventes do naufrágio do navio baleeiro, forçados a recorrer ao canibalismo e a sofrer os piores padecimentos em pleno alto mar.
A Grande Baleia Branca
A caça à baleia branca permanece uma metáfora poderosa, realizada de forma exemplar.
De entre os navios ficcionais mais famosos de toda a literatura, o «Pequod», baleeiro sob as ordens do implacável capitão Ahab é, sem dúvida, a estrela.
O norte-americano Herman Melville inspirou-se numa história verídica (o afundamento de um baleeiro atacado por um grande cachalote) para escrever Moby Dick (1851), a sua obra-prima e um dos grandes títulos da literatura universal.
Originalmente intitulado The Whale (A Baleia), foi publicado em três volumes e a edição inglesa foi censurada, com o corte de trechos susceptíveis de ofender sensibilidades morais e políticas.
Melville, ele próprio baleeiro quando jovem, participou numa campanha de caça à baleia no Pacífico, da qual acabaria por desertar já nas paradisíacas Ilhas Marquesas, vivendo vários meses com o povo taipi. Agregou-se depois à tripulação de uma baleeira australiana, foi preso como amotinado, navegou pelos mares do Sul, alistou-se num navio de guerra do seu país e regressou aos Estados Unidos. Deu então "baixa" na marinha e ingressou na literatura, de onde não mais saiu .
Em Moby Dick (1851), Melville transformou o mar num reino absurdo e sem lógica, que desafia a compreensão humana. O autor construíu a história atormentada de uma luta formidável entre uma gigantesca baleia branca (Moby Dick) e um homem obcecado, o veterano capitão Ahab, cuja perna tinha sido decepada num encontro anterior com o cetáceo. A narrativa descreve longamente a perseguição infindável de Moby Dick e a apoteose do encontro final entre o animal e o homem que o que o persegue. Mas o sucesso literário foi efémero e o escritor aposentou-se na vida real como agente da Alfândega no Porto de Nova York.
Esta obsessiva jornada tornou-se numa das mais fantásticas aventuras literárias marítimas e deu lugar a vários filmes para o cinema (e séries televisivas), um dos quais realizado por John Huston.
Moby Dick, por seu turno, inspirou dezenas de outros autores.
P.S.
Para quem não acredita em histórias de navios afundados por baleias, aqui fica uma notícia de acontecimento semelhante ocorrido, curiosamente, ainda este último Verão .
Género essencialmente anglo-americano, a literatura marítima tem os seus cultores e movimenta toda uma indústria editorial, fornecendo relatos de ficção e não-ficção sobre batalhas navais, relatos pessoais de almirantes e marinheiros, piratas e corsários, viagens de exploração, desastres e naufragios. Assunto não falta e o género tem os seus mestres. São escritores que fizeram dos mares uma fonte rica e inesgotável de temas para as suas obras.
O Naufrágio do Essex
A veracidade das narrativas confunde-se, por vezes, com as experiências de vida dos próprios autores. Em 1820, após o ataque inesperado de um cachalote enfurecido, o baleeiro «Essex» afundou-se num instante algures no Pacífico Norte. Nunca se imaginara que uma baleia pudesse reagir aos pescadores que a perseguiam. O que se seguiu ao naufrágio foi uma longa provação pelas águas do Pacífico: amontoados em três botes, os marinheiros navegaram durante três meses, experimentando os horrores da inanição e da desidratação, da doença, da loucura e da morte, chegando à práctica do canibalismo.
Owen Chase, primeiro-imediato e um dos oito sobreviventes do «Essex», navio que serviu de modelo para o «Pequod», em Moby Dick, escreveu um minucioso relato de 128 páginas intitulado Narratives of the Wreck of the Whale-Ship Essex (Narrativa do Naufrágio do Baleeiro Essex). O relato, escrito na primeira pessoa, dramático e de força maior porque feito com a autoridade de quem viveu os acontecimentos, foi a principal fonte de inspiração de Herman Melville (ver mais abaixo), que o leu quando tinha por volta de 20 anos. Esta obra passou a ser o mais importante documento sobre a história real do navio baleeiro.
Conhecem-se outros relatos de sobreviventes deste naufrágio, mas nenhum tão importante e detalhado quanto o de Owen Chase. No entanto, por volta de 1960, encontrou-se um livro de anotações guardado no sótão de uma residência em Penn Yan, na cidade de Nova York. Em 1980, o manuscrito chegou às mãos de um especialista da caça à baleia, o qual, depois de muita investigação, descobriu ter sido seu autor o camareiro do «Essex», Thomas Nickerson. Nickerson tinha embarcado com apenas 14 anos e encontrava-se ao leme do navio quando do ataque da baleia. Sobrevivente do ataque, voltou a Nantucket, tornando-se dono de uma estalagem. Aos 71 anos, instado por um dos fregueses aos quais narrava a tragédia do «Essex», escreveu a história que, por vias tortuosas, foi parar àquele sótão esquecido na povoação de Penn Yan, para vir a público quase 200 anos depois dos acontecimentos narrados.
Foi juntando os dados das narrativas de Chase e Nickerson e de estudos posteriores, além dos próprios, que Nathaniel Philbrick (ele próprio campeão de regatas) reuniu material para escrever In the Heart of the Sea (No Coração do Mar, Europa-América, 2003, vencedor do prémio "National Book Awards" nos Estados Unidos em 2000, categoria Não-Ficção). Nele é retratada a história do «Essex» - a sua construção, as viagens anteriores, a formação da sua tripulação para a última viagem, as relações humanas a bordo e, sobretudo, da maneira como sobreviveram ao naufrágio 8 dos 21 pescadores embarcados. O livro relata o dia-a-dia dos sobreviventes do naufrágio do navio baleeiro, forçados a recorrer ao canibalismo e a sofrer os piores padecimentos em pleno alto mar.
A Grande Baleia Branca
A caça à baleia branca permanece uma metáfora poderosa, realizada de forma exemplar.
De entre os navios ficcionais mais famosos de toda a literatura, o «Pequod», baleeiro sob as ordens do implacável capitão Ahab é, sem dúvida, a estrela.
O norte-americano Herman Melville inspirou-se numa história verídica (o afundamento de um baleeiro atacado por um grande cachalote) para escrever Moby Dick (1851), a sua obra-prima e um dos grandes títulos da literatura universal.
Originalmente intitulado The Whale (A Baleia), foi publicado em três volumes e a edição inglesa foi censurada, com o corte de trechos susceptíveis de ofender sensibilidades morais e políticas.
Melville, ele próprio baleeiro quando jovem, participou numa campanha de caça à baleia no Pacífico, da qual acabaria por desertar já nas paradisíacas Ilhas Marquesas, vivendo vários meses com o povo taipi. Agregou-se depois à tripulação de uma baleeira australiana, foi preso como amotinado, navegou pelos mares do Sul, alistou-se num navio de guerra do seu país e regressou aos Estados Unidos. Deu então "baixa" na marinha e ingressou na literatura, de onde não mais saiu .
Em Moby Dick (1851), Melville transformou o mar num reino absurdo e sem lógica, que desafia a compreensão humana. O autor construíu a história atormentada de uma luta formidável entre uma gigantesca baleia branca (Moby Dick) e um homem obcecado, o veterano capitão Ahab, cuja perna tinha sido decepada num encontro anterior com o cetáceo. A narrativa descreve longamente a perseguição infindável de Moby Dick e a apoteose do encontro final entre o animal e o homem que o que o persegue. Mas o sucesso literário foi efémero e o escritor aposentou-se na vida real como agente da Alfândega no Porto de Nova York.
Esta obsessiva jornada tornou-se numa das mais fantásticas aventuras literárias marítimas e deu lugar a vários filmes para o cinema (e séries televisivas), um dos quais realizado por John Huston.
Moby Dick, por seu turno, inspirou dezenas de outros autores.
P.S.
Para quem não acredita em histórias de navios afundados por baleias, aqui fica uma notícia de acontecimento semelhante ocorrido, curiosamente, ainda este último Verão .
sexta-feira, outubro 24, 2003
Captain's Blog
Avaria em alto-mar
Acontece, por vezes, ao melhor marinheiro: uma avaria estúpida em plena singradura, no meio do oceano. Após 8 dias sem Net, qualquer um se sente um náufrago hoje em dia. Foi o que me aconteceu. E agora, mãos à obra.
Salva-Vidas
Entretanto, e porque pensava fazer isto já há uns tempos, 850 leituras é um número tão bom como qualquer outro para comemorar, quando se partilha a nossa navegação com tão excelente companhia como todos os leitores, curiosos, amigos e interessados nestas andanças marítimas. Agradecimentos justamente dedicados ao Alexandre, ao Hugo e à Mariana da Bahia (obrigado pelo livro tão interessante!) pelo contínuo apoio e interesse demonstrado ao longo deste mês e meio por este humilde "blog" marítimo. Não menos merecidos são, pela amabilidade e competência "bloguística", o Blog-Notas e a Guerra Civil Espanhola, o Diário de Bordo e, com especial simpatia, a Madalena. Obrigado e continuação de bom "blog" a todos.
Seguem-se mais histórias e memórias do Mar para todos, porque o Mar é de todos...
Acontece, por vezes, ao melhor marinheiro: uma avaria estúpida em plena singradura, no meio do oceano. Após 8 dias sem Net, qualquer um se sente um náufrago hoje em dia. Foi o que me aconteceu. E agora, mãos à obra.
Salva-Vidas
Entretanto, e porque pensava fazer isto já há uns tempos, 850 leituras é um número tão bom como qualquer outro para comemorar, quando se partilha a nossa navegação com tão excelente companhia como todos os leitores, curiosos, amigos e interessados nestas andanças marítimas. Agradecimentos justamente dedicados ao Alexandre, ao Hugo e à Mariana da Bahia (obrigado pelo livro tão interessante!) pelo contínuo apoio e interesse demonstrado ao longo deste mês e meio por este humilde "blog" marítimo. Não menos merecidos são, pela amabilidade e competência "bloguística", o Blog-Notas e a Guerra Civil Espanhola, o Diário de Bordo e, com especial simpatia, a Madalena. Obrigado e continuação de bom "blog" a todos.
Seguem-se mais histórias e memórias do Mar para todos, porque o Mar é de todos...
quarta-feira, outubro 15, 2003
Os Livros e o Fascínio do Mar (III)
Outro dos grandes autores que reflectiu criticamente sobre os homens dos Descobrimentos foi Gil Vicente. Para além das peças de componente religioso e carácter alegórico, enveredou pela crítica social em farsas e tragicomédias. A sua vida e obra tornaram-se imortais.
Organizador de muitas festas da Corte, expressando nos seus autos a dualidade da avaliação da expansão marítima portuguesa: visão crítica, expressa nas sátiras, apologia da expansão e orgulho pelo alargamento do mundo e desbravar dos Oceanos e dos inegáveis feitos dos portugueses que, na perspectiva da época, cumpriam também um ideal de Cruzada.
O final do Auto da Moralidade, a Exortação à Guerra e sobretudo o Auto da Barca do Inferno, traduzem indubitavelmente uma exaltação ao espírito de cruzada relativamente às campanhas do Norte de África, pelo que se conclui que o poeta era adepto da corrente de expansão marroquina, (que se opunha à orientalista como acontece com o Velho do Restelo n´Os Lusíadas). Neste último auto aparece-nos retratada na sua plenitude toda a sociedade quinhentista: clero, nobreza e povo, desde o frade devasso, a alcoviteira e os cavaleiros, que exaltam o espírito de cruzada no final da obra.
Em simultâneo, Gil Vicente desmistifica a imagem heróica do guerreiro do Oriente, retratando-o como um aventureiro, aguentando os riscos das longas e arriscadas navegações oceânicas e das guerras e pelejas constantes, na ambição de enriquecer.
Representado em 1529, o Auto do Triunfo do Inverno tem ainda como temática inspiradora a realidade nacional analisada do ponto de vista crítico, incluindo na sua visão dramático-satírica da sociedade portuguesa a incompetência dos pilotos dos navios, que era na altura uma das principais causas dos naufrágios marítimos, que marcaram negativamente a Expansão marítima portuguesa dos séculos XV e XVI.
Gil Vicente refere a ignorância de muitos dos responsáveis máximos pela náutica a bordo dos navios das Descobertas, a propósito de um «piloto de Alcochete / para o rio das enguias», responsável pela viagem para a Índia por estar a coberto de «aderentes» (ou seja, protectores que asseguravam a sua colocação profissional, sendo recompensados pecuniariamente) e apontando pilotos que são pretensiosamente tratados por «Vossa Mercê», apenas por terem ascendência nobre e a quem os marinheiros têm de se submeter, apesar da sua experiência.
Pela descrição de um naufrágio, coloca em cena um piloto cuja ignorância é criticada pelo personagem do Marinheiro, o qual afirma que os pilotos eram escolhidos pelo dinheiro e não pela competência, situação que apesar de tudo se manteve e que fica patenteada nos versos:
Esta é ua errada, / Que mil erros traz consigo. / ofício de tanto perigo / dar-se a quem não sabe nada. / Este ladrão do dinheiro / faz estes maus terramotos; / que seu sei mais que dez pilotos, / e sempre sou marinheiro.
No entanto, no Auto da Fama, cujo ano da primeira exibição não está ainda determinado com exactidão, e onde se referem as expedições ultramarinas de 1514, Gil Vicente apresenta-se como o porta-voz da Corte, que enviara nesse ano uma embaixada ao Papa Leão X, a quem Tristão da Cunha que a comandava, ofereceu simbolicamente «as Premícias da Navegação da Índia», causando o espanto pela sumptuosidade e esplendor dos presentes, que eram de tal maneira exóticos que incluíam um elefante, para além de uma onça de caça e de um cavalo persa, enviados ao rei D. Manuel pelo rei de Ormuz, conforme relato na Crónica de D. Manuel por Damião de Góis.
Gil Vicente deixa bem expresso no seu Auto o regozijo e a celebração pelas explorações e feitos dos portugueses, desde a Guiné até à Malásia, passando pelo recém-descoberto Brasil. Mas nem por isso deixa de introduzir uma visão mais mundana e mordaz do simples mundo em que navegavam os portugueses mareantes.
Como notou Leonor Freire Costa: «Nas proximidades do Paço do Terreiro, sobre as areias do Tejo, instalava-se o estaleiro mais activamente empenhado no provimento de cada armada. Dali se convivia de perto com a mestria de carpinteiros e calafates, dali se desfrutava o vai e vem de navios e barcas que aportavam na cidade. Só a familiaridade da nobre assistência com as coisas do mar proporcionaria a Gil Vicente, na Tragicomédia do Inverno e Verão, a oportunidades de provocar o riso com trocadilhos entre vocábulos específicos do linguajar de pilotos, e marinheiros, onde as velas são lençóis e o traquete é termo que Gregório, o grumete, afirma desconhecer: "traque sei eu que he, mas quete não sei eu". Ou ainda, na Nau de Amores, as analogias entre estados de alma e as técnicas e materiais próprios da construção naval. A nau sairía da Ribeira, onde se faziam as melhores. A vontade seria a madeira, a razão, pregadura, a tristeza, o pez».
Da destreza (ou da falta dela) até à pretensão de muitos personagens marítimos com que o autor se deparou na Corte portuguesa à beira-rio plantada, no Paço da Ribeira, em verso irónico e perspicaz. Mas também não falta a opinião amarga de quem testemunhou o favoritismo e a corrupção nos meandros náuticos:
"Os homens hão-de seguir
a opinião geral,
porque já em Portugal
quem não costuma mentir,
não alcança um só real.
Que os homes verdadeiros
não são tidos numa palha;
os que são mexeriqueiros
mentirosos, lisongeiros,
esses vencem a batalha".
A verdade contida neste excerto do diálogo do «Vilão» com a «Verdade», no Auto da Festa talvez ainda não fosse muito evidente na época de Gil Vicente. Mas o tempo encarregar-se-ia de confirmar estas afirmações, sobretudo quando já no ultimo quartel do séc. XVI uma das causas dos naufrágios eram apontadas publicamente como resultado da má preparação e da corrupção dos pilotos.
Uma situação que não se confinou a Portugal. A Espanha de Filipe II, detentora da hegemonia naval no Atlântico também se debatia nesse final de século com o mesmo problema. Rumos que os impérios decadentes teciam, desgovernados e à deriva face a opositores dinâmicos que, como a Inglaterra e a Holanda, davam novas cartas na náutica e marinharia.
Diário de Leitura:
BRAGA, Marques (ed.), Obras Completas (Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1955), vol. VI
COSTA, Leonor Freire, Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa: a construção naval no século XVI para a Rota do Cabo (Cascais, 1997)
Organizador de muitas festas da Corte, expressando nos seus autos a dualidade da avaliação da expansão marítima portuguesa: visão crítica, expressa nas sátiras, apologia da expansão e orgulho pelo alargamento do mundo e desbravar dos Oceanos e dos inegáveis feitos dos portugueses que, na perspectiva da época, cumpriam também um ideal de Cruzada.
O final do Auto da Moralidade, a Exortação à Guerra e sobretudo o Auto da Barca do Inferno, traduzem indubitavelmente uma exaltação ao espírito de cruzada relativamente às campanhas do Norte de África, pelo que se conclui que o poeta era adepto da corrente de expansão marroquina, (que se opunha à orientalista como acontece com o Velho do Restelo n´Os Lusíadas). Neste último auto aparece-nos retratada na sua plenitude toda a sociedade quinhentista: clero, nobreza e povo, desde o frade devasso, a alcoviteira e os cavaleiros, que exaltam o espírito de cruzada no final da obra.
Em simultâneo, Gil Vicente desmistifica a imagem heróica do guerreiro do Oriente, retratando-o como um aventureiro, aguentando os riscos das longas e arriscadas navegações oceânicas e das guerras e pelejas constantes, na ambição de enriquecer.
Representado em 1529, o Auto do Triunfo do Inverno tem ainda como temática inspiradora a realidade nacional analisada do ponto de vista crítico, incluindo na sua visão dramático-satírica da sociedade portuguesa a incompetência dos pilotos dos navios, que era na altura uma das principais causas dos naufrágios marítimos, que marcaram negativamente a Expansão marítima portuguesa dos séculos XV e XVI.
Gil Vicente refere a ignorância de muitos dos responsáveis máximos pela náutica a bordo dos navios das Descobertas, a propósito de um «piloto de Alcochete / para o rio das enguias», responsável pela viagem para a Índia por estar a coberto de «aderentes» (ou seja, protectores que asseguravam a sua colocação profissional, sendo recompensados pecuniariamente) e apontando pilotos que são pretensiosamente tratados por «Vossa Mercê», apenas por terem ascendência nobre e a quem os marinheiros têm de se submeter, apesar da sua experiência.
Pela descrição de um naufrágio, coloca em cena um piloto cuja ignorância é criticada pelo personagem do Marinheiro, o qual afirma que os pilotos eram escolhidos pelo dinheiro e não pela competência, situação que apesar de tudo se manteve e que fica patenteada nos versos:
Esta é ua errada, / Que mil erros traz consigo. / ofício de tanto perigo / dar-se a quem não sabe nada. / Este ladrão do dinheiro / faz estes maus terramotos; / que seu sei mais que dez pilotos, / e sempre sou marinheiro.
No entanto, no Auto da Fama, cujo ano da primeira exibição não está ainda determinado com exactidão, e onde se referem as expedições ultramarinas de 1514, Gil Vicente apresenta-se como o porta-voz da Corte, que enviara nesse ano uma embaixada ao Papa Leão X, a quem Tristão da Cunha que a comandava, ofereceu simbolicamente «as Premícias da Navegação da Índia», causando o espanto pela sumptuosidade e esplendor dos presentes, que eram de tal maneira exóticos que incluíam um elefante, para além de uma onça de caça e de um cavalo persa, enviados ao rei D. Manuel pelo rei de Ormuz, conforme relato na Crónica de D. Manuel por Damião de Góis.
Gil Vicente deixa bem expresso no seu Auto o regozijo e a celebração pelas explorações e feitos dos portugueses, desde a Guiné até à Malásia, passando pelo recém-descoberto Brasil. Mas nem por isso deixa de introduzir uma visão mais mundana e mordaz do simples mundo em que navegavam os portugueses mareantes.
Como notou Leonor Freire Costa: «Nas proximidades do Paço do Terreiro, sobre as areias do Tejo, instalava-se o estaleiro mais activamente empenhado no provimento de cada armada. Dali se convivia de perto com a mestria de carpinteiros e calafates, dali se desfrutava o vai e vem de navios e barcas que aportavam na cidade. Só a familiaridade da nobre assistência com as coisas do mar proporcionaria a Gil Vicente, na Tragicomédia do Inverno e Verão, a oportunidades de provocar o riso com trocadilhos entre vocábulos específicos do linguajar de pilotos, e marinheiros, onde as velas são lençóis e o traquete é termo que Gregório, o grumete, afirma desconhecer: "traque sei eu que he, mas quete não sei eu". Ou ainda, na Nau de Amores, as analogias entre estados de alma e as técnicas e materiais próprios da construção naval. A nau sairía da Ribeira, onde se faziam as melhores. A vontade seria a madeira, a razão, pregadura, a tristeza, o pez».
Da destreza (ou da falta dela) até à pretensão de muitos personagens marítimos com que o autor se deparou na Corte portuguesa à beira-rio plantada, no Paço da Ribeira, em verso irónico e perspicaz. Mas também não falta a opinião amarga de quem testemunhou o favoritismo e a corrupção nos meandros náuticos:
"Os homens hão-de seguir
a opinião geral,
porque já em Portugal
quem não costuma mentir,
não alcança um só real.
Que os homes verdadeiros
não são tidos numa palha;
os que são mexeriqueiros
mentirosos, lisongeiros,
esses vencem a batalha".
A verdade contida neste excerto do diálogo do «Vilão» com a «Verdade», no Auto da Festa talvez ainda não fosse muito evidente na época de Gil Vicente. Mas o tempo encarregar-se-ia de confirmar estas afirmações, sobretudo quando já no ultimo quartel do séc. XVI uma das causas dos naufrágios eram apontadas publicamente como resultado da má preparação e da corrupção dos pilotos.
Uma situação que não se confinou a Portugal. A Espanha de Filipe II, detentora da hegemonia naval no Atlântico também se debatia nesse final de século com o mesmo problema. Rumos que os impérios decadentes teciam, desgovernados e à deriva face a opositores dinâmicos que, como a Inglaterra e a Holanda, davam novas cartas na náutica e marinharia.
Diário de Leitura:
BRAGA, Marques (ed.), Obras Completas (Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1955), vol. VI
COSTA, Leonor Freire, Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa: a construção naval no século XVI para a Rota do Cabo (Cascais, 1997)
domingo, outubro 12, 2003
Os Livros e o Fascínio do Mar (II)
É sobretudo no século XVI, quando a literatura portuguesa se enriquece com novas temáticas e símbolos, que o mar passa a ser ambiente de fundo e é cantado por historiadores e poetas. O Mar desdobra-se então em múltiplos aspectos: Saudade, cântico heróico, mística religiosa, simbologia, imagem do infinito, interpretação nacionalista e social. O tema do Mar na Literatura nacional torna-se uma constante histórica, sintetizando muitas características gerais da identidade portuguesa (tragédia, fatalidade, emigração, negócio e religiosidade), incorporadas no modo de "ser português".
Como consequência da longa permanência no mar e do continuo convívio com ele, o tema das navegações e naufrágios encontra-se fortemente enraizado na Literatura Portuguesa .
Foi justamente com uma referência ao "Naufrágio de Sepúlveda" (incluído mais tarde na História Trágico-Marítima) que Camões ilustrou n'Os Lusíadas (Canto V, est. 44) uma das terríveis profecias do gigante Adamastor, guardião do Cabo das Tormentas:
"Antes, em vossas naus vereis, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
que o menor mal de todos seja a morte!"
O naufrágio dos portugueses seria uma das consequências a atingir os navegantes que se atreveram a desafiar a fronteira dos mares desconhecidos.
Na verdade, o conhecimento dos longínquos novos mundos e culturas foi trazido do outro lado dos mares em primeira mão para a Europa através de personagens que experimentaram as andanças de um império essencialmente marítimo. Os encontros e os acidentes de percurso sucederam-se em resultado do confronto com uma realidade por vezes dura e inquietante, mas foi o génio criador e narrativo que fixou para a posteridade de maneira detalhada e envolvente toda essa experiência humana. Para além do desenrolar alucinante da acção, as descrições são ricas em elementos geográficos e sócio-culturais que, na sua época, constituíram uma autêntica revelação para o mundo Ocidental.
A inesgotável curiosidade dos viajantes marítimos depressa se difundiu, encontrando um público ávido de todo o exotismo e novidade dos mundos recém-descobertos.
Os relatos de viagem que marcam a aventura dos navegadores do séc. XVI são inúmeros. Todos eles estão ligados à acção do homem, ao invés dos tradicionais romances de cavalaria da Idade Média, de carácter alegórico e espiritual. Pero Vaz de Caminha foi autor porventura do mais famoso, a Carta do Achamento da Terra de Vera Cruz (1500), endereçada ao rei D. Manuel, na viagem em que Pedro Álvares Cabral levou as naus à costa sul-americana, hoje conhecida por Brasil.
A Literatura de Viagens é um dos testemunhos mais ricos das relações de Portugal com os Oceanos. Quer seja por uma perspectiva histórica ou literária, o nosso conhecimento não deixa de alargar os horizontes relativos aos caminhos trilhados no passado. Mas, sempre que viajamos por este tipo de literatura, um vulto singular destaca-se: Fernão Mendes Pinto, autor da memorável Peregrinação.
O autor, nascido cerca de 1510, depois de trazido para Lisboa com 10 ou 12 anos de idade, embarcou para a Índia em 1537. Daí seguiu para o Oriente e do que lá passou nos dá conta na sua obra. Após 21 anos de navegações, desventuras, naufrágios, combates e cativeiro, regressou a Portugal. Já casado, fixou-se em Almada, escrevendo o livro que o tornaria famoso. Morreu em 1583.
Trazendo até aos nossos dias uma imagem muito realista do mundo no séc. XVI, inovando na literatura pela riqueza descritiva da vida e costumes dos povos orientais, Fernão Mendes Pinto tornou-se no grande precursor, a quase quatrocentos anos de distância, de outros escritores portugueses, como Wenceslau de Morais (séc. XIX), que descreveram a vida e os costumes dos povos orientais. Por outro lado, também se contam neste seu relato semi-autobiográfico nada menos de 14 naufrágios nos mares do Índico e da China. O próprio Mendes Pinto encontrou-se a bordo de 11 deles.
Paisagens, costumes, naufrágios e batalhas, tudo é descrito com particular realismo. Ao lado de quadros em que o leitor é colocado diante de maravilhas e reinos fantásticos, surgem os quadros relativos aos portugueses aventureiros capazes de todas as ousadias, pelas terras do Oriente, fascinados pelo poder e pela riqueza, não ocultando sequer as humilhações por que passou, roubos e violências em que tomou parte, no desejo de deixar um registo dentro dos limites do verosímil. Considerada na época um produto da imaginação do autor, está actualmente comprovada o carácter fidedigno da Peregrinação pela moderna investigação histórica, que baseou as investigações em alguns textos japoneses e em cartas de missionários do Japão.
O mundo em que o leitor viaja de mãos dadas com Fernão Mendes Pinto é um misto de verdade e fantasia. Espécie de anti-herói, dominado pelo instinto de sobrevivência, infringe as leis da moral e caminha na artimanha, na crueldade, na mentira. Este herói mal-aventurado, tão ao gosto do espírito português, termina a sua peregrinação desiludido com a vida de aventureiro, com os trabalhos e perigos por que passou.
A Expansão marítima portuguesa suscitou uma pluralidade de reflexões que oscilavam entre o encómio e a crítica. Um exemplo de uma voz atenta aos desvios da sociedade portuguesa é Sá de Miranda, humanista que introduziu em Portugal o soneto e outras formas clássicas do movimento renascentista italiano. Salientamos, pelo tom moral e sentencioso, as suas «Cartas». Especialmente crítico com a situação do país, improdutivo e totalmente dependente do comércio com a Índia, incompatibiliza-se com a vida cortesã e retira-se para o campo.
Estas críticas estão bem expressas na Carta V, «A Pêro de Carvalho», quando afirma «ora revolvendo o mar, / ora revolvendo a terra (...) porque vos vendeu a cobiça / a mar bravo e a ventos bravos».
Sá de Miranda é um observador desalentado com a realidade de um país abandonado, responsabilizando de igual forma o comércio do Oriente pelo despovoamento do reino e abandono da agricultura, derivados do «cheiro da canela»), cujo significado seria o do enriquecimento rápido e aquisição menos digna de sinais de prosperidade (argumentos retomados de igual forma por Camões, no discurso do Velho do Restelo). Sá de Miranda chega a apelidar os marinheiros de vagabundos que desperdiçavam a sua vida associando-os por analogia a símios por treparem aos mastros e enxárcias ( «Os marinheiros vadios / que vilmente a vida apreçam, / pelas cordas dos navios, / volteiam como bugios») citando em contraste com a sua vida errante e aventureira, os «santos suores» dos lavradores.
No entanto, Sá de Miranda não deixou de admirar a coragem e ousadia com que os seus contemporâneos sulcaram os oceanos, desvendando regiões inexploradas nos confins do planeta, designadamente nos versos «Gente que não teme nada, / com tudo se desafia, / por mares sem fundos nada; / passou a zona torrada, / anda por passar a fria»,ou seja, as latitudes extremas do planeta.
P.S.
Como complemento do "post" anterior, aqui fica a indicação do texto integral do "Naufragio" de Alvar Núñez Cabeza de Vaca.
Pena é que o mesmo não aconteça com os textos de Sá de Miranda ou Fernão Mendes Pinto, entre tantos outros clássicos da nossa literatura.
Diário de Leitura:
LANCIANI, Giulia, Os Relatos de Naufrágios na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI e XVII (Lisboa, 1979)
OSÓRIO, João de Castro, O Além-Mar na Literatura Portuguesa (Lisboa,1948)
PALMA-FERREIRA, João, Naufrágios, Viagens, Fantasias e Batalhas (Lisboa, s.d.)
Como consequência da longa permanência no mar e do continuo convívio com ele, o tema das navegações e naufrágios encontra-se fortemente enraizado na Literatura Portuguesa .
Foi justamente com uma referência ao "Naufrágio de Sepúlveda" (incluído mais tarde na História Trágico-Marítima) que Camões ilustrou n'Os Lusíadas (Canto V, est. 44) uma das terríveis profecias do gigante Adamastor, guardião do Cabo das Tormentas:
"Antes, em vossas naus vereis, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
que o menor mal de todos seja a morte!"
O naufrágio dos portugueses seria uma das consequências a atingir os navegantes que se atreveram a desafiar a fronteira dos mares desconhecidos.
Na verdade, o conhecimento dos longínquos novos mundos e culturas foi trazido do outro lado dos mares em primeira mão para a Europa através de personagens que experimentaram as andanças de um império essencialmente marítimo. Os encontros e os acidentes de percurso sucederam-se em resultado do confronto com uma realidade por vezes dura e inquietante, mas foi o génio criador e narrativo que fixou para a posteridade de maneira detalhada e envolvente toda essa experiência humana. Para além do desenrolar alucinante da acção, as descrições são ricas em elementos geográficos e sócio-culturais que, na sua época, constituíram uma autêntica revelação para o mundo Ocidental.
A inesgotável curiosidade dos viajantes marítimos depressa se difundiu, encontrando um público ávido de todo o exotismo e novidade dos mundos recém-descobertos.
Os relatos de viagem que marcam a aventura dos navegadores do séc. XVI são inúmeros. Todos eles estão ligados à acção do homem, ao invés dos tradicionais romances de cavalaria da Idade Média, de carácter alegórico e espiritual. Pero Vaz de Caminha foi autor porventura do mais famoso, a Carta do Achamento da Terra de Vera Cruz (1500), endereçada ao rei D. Manuel, na viagem em que Pedro Álvares Cabral levou as naus à costa sul-americana, hoje conhecida por Brasil.
A Literatura de Viagens é um dos testemunhos mais ricos das relações de Portugal com os Oceanos. Quer seja por uma perspectiva histórica ou literária, o nosso conhecimento não deixa de alargar os horizontes relativos aos caminhos trilhados no passado. Mas, sempre que viajamos por este tipo de literatura, um vulto singular destaca-se: Fernão Mendes Pinto, autor da memorável Peregrinação.
O autor, nascido cerca de 1510, depois de trazido para Lisboa com 10 ou 12 anos de idade, embarcou para a Índia em 1537. Daí seguiu para o Oriente e do que lá passou nos dá conta na sua obra. Após 21 anos de navegações, desventuras, naufrágios, combates e cativeiro, regressou a Portugal. Já casado, fixou-se em Almada, escrevendo o livro que o tornaria famoso. Morreu em 1583.
Trazendo até aos nossos dias uma imagem muito realista do mundo no séc. XVI, inovando na literatura pela riqueza descritiva da vida e costumes dos povos orientais, Fernão Mendes Pinto tornou-se no grande precursor, a quase quatrocentos anos de distância, de outros escritores portugueses, como Wenceslau de Morais (séc. XIX), que descreveram a vida e os costumes dos povos orientais. Por outro lado, também se contam neste seu relato semi-autobiográfico nada menos de 14 naufrágios nos mares do Índico e da China. O próprio Mendes Pinto encontrou-se a bordo de 11 deles.
Paisagens, costumes, naufrágios e batalhas, tudo é descrito com particular realismo. Ao lado de quadros em que o leitor é colocado diante de maravilhas e reinos fantásticos, surgem os quadros relativos aos portugueses aventureiros capazes de todas as ousadias, pelas terras do Oriente, fascinados pelo poder e pela riqueza, não ocultando sequer as humilhações por que passou, roubos e violências em que tomou parte, no desejo de deixar um registo dentro dos limites do verosímil. Considerada na época um produto da imaginação do autor, está actualmente comprovada o carácter fidedigno da Peregrinação pela moderna investigação histórica, que baseou as investigações em alguns textos japoneses e em cartas de missionários do Japão.
O mundo em que o leitor viaja de mãos dadas com Fernão Mendes Pinto é um misto de verdade e fantasia. Espécie de anti-herói, dominado pelo instinto de sobrevivência, infringe as leis da moral e caminha na artimanha, na crueldade, na mentira. Este herói mal-aventurado, tão ao gosto do espírito português, termina a sua peregrinação desiludido com a vida de aventureiro, com os trabalhos e perigos por que passou.
A Expansão marítima portuguesa suscitou uma pluralidade de reflexões que oscilavam entre o encómio e a crítica. Um exemplo de uma voz atenta aos desvios da sociedade portuguesa é Sá de Miranda, humanista que introduziu em Portugal o soneto e outras formas clássicas do movimento renascentista italiano. Salientamos, pelo tom moral e sentencioso, as suas «Cartas». Especialmente crítico com a situação do país, improdutivo e totalmente dependente do comércio com a Índia, incompatibiliza-se com a vida cortesã e retira-se para o campo.
Estas críticas estão bem expressas na Carta V, «A Pêro de Carvalho», quando afirma «ora revolvendo o mar, / ora revolvendo a terra (...) porque vos vendeu a cobiça / a mar bravo e a ventos bravos».
Sá de Miranda é um observador desalentado com a realidade de um país abandonado, responsabilizando de igual forma o comércio do Oriente pelo despovoamento do reino e abandono da agricultura, derivados do «cheiro da canela»), cujo significado seria o do enriquecimento rápido e aquisição menos digna de sinais de prosperidade (argumentos retomados de igual forma por Camões, no discurso do Velho do Restelo). Sá de Miranda chega a apelidar os marinheiros de vagabundos que desperdiçavam a sua vida associando-os por analogia a símios por treparem aos mastros e enxárcias ( «Os marinheiros vadios / que vilmente a vida apreçam, / pelas cordas dos navios, / volteiam como bugios») citando em contraste com a sua vida errante e aventureira, os «santos suores» dos lavradores.
No entanto, Sá de Miranda não deixou de admirar a coragem e ousadia com que os seus contemporâneos sulcaram os oceanos, desvendando regiões inexploradas nos confins do planeta, designadamente nos versos «Gente que não teme nada, / com tudo se desafia, / por mares sem fundos nada; / passou a zona torrada, / anda por passar a fria»,ou seja, as latitudes extremas do planeta.
P.S.
Como complemento do "post" anterior, aqui fica a indicação do texto integral do "Naufragio" de Alvar Núñez Cabeza de Vaca.
Pena é que o mesmo não aconteça com os textos de Sá de Miranda ou Fernão Mendes Pinto, entre tantos outros clássicos da nossa literatura.
Diário de Leitura:
LANCIANI, Giulia, Os Relatos de Naufrágios na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI e XVII (Lisboa, 1979)
OSÓRIO, João de Castro, O Além-Mar na Literatura Portuguesa (Lisboa,1948)
PALMA-FERREIRA, João, Naufrágios, Viagens, Fantasias e Batalhas (Lisboa, s.d.)
terça-feira, outubro 07, 2003
Senhores do Mar (III)
A verdade é que já em 1581, logo após a conquista espanhola de Portugal, o simples facto de se anunciar a preparação da partida de uma armada provocava a fuga de potenciais marinheiros, "porque todos aborreçen el yr a servir en armadas que con aver mas de quinientos marineros en los navios que truxe a mi cargo y estar tan neçessitados y no tener de presente en que se ocupar hasta agora no ha avido ninguno que quiera seruir antes se an huydo muchos en entendiendo que se azia Armada". No final da década seguinte, um alto oficial espanhol manifestava a sua frustração de que a falta de reconhecimento e de recompensas para com os marinheiros da armada espanhola constituíam a principal causa da ineficácia do poder naval espanhol.
Curiosamente, alguns destes pilotos e muitos marinheiros procuravam então não só fugir das mãos da pesada máquina militar espanhola (na qual encontravam fraca recompensa), como também a ânsia do lucro fácil junto dos navios predadores das potências rivais que defrontavam Espanha e Portugal nos mares.
Em 1588, ano da "Invencível" Armada (que largou de Lisboa no final de Maio), o português Domingos Dias, natural de Aveiro e descrito como "mulato", que servira anteriormente na Carreira da Índia, navegava na esquadra liderada pelo corsário William Irish. Apenas 3 anos antes, o português, do qual nada mais se sabe, servira de piloto no navio de aviso enviado pelo marquês de Santa Cruz a Santo Domingo, aquando do ataque de Drake.
No ano seguinte ao episódio da "Invencível" Armada, o vedor e provedor das obras de fortificação de Setúbal, porto onde era frequente a imposição de embargos sobre os navios, apontou em carta ao rei a dificuldade na recruta de marinheiros em Portugal para as armadas, devido à falta de condições vividas a bordo dos navios do rei. Nas suas palavras, "como es muy notorio y cada dia mas se ba entendiendo la poca voluntad con que los dichos marineros sirven a Vuestra Magestad y eso por la mayor parte se entiende tienen los pueblos y personas que tienen a cargo haçer los dichos marineros".
Os marinheiros práticos escapavam ao serviço da Coroa, recorrendo-se à sua substituição por pessoal menos experiente. Devido a esta situação, "no es de espantar de qualquiera desastre en las naves y de su poco govierno y ser poco beleras pues el corazon de la nave consiste en ser bien marinada". As más condições de vida a bordo dos navios de guerra e a ameaça constante de navios corsários dissuadiram muitos portugueses do embarque nas armadas Reais, optando pela pesca costeira. Nesta época, o oficial espanhol Sarmiento Valladares aconselhava a elaboração de listas da gente de mar e livros de matrícula a ser aplicados nos principais portos do reino e estivessem a cargo de oficiais de justiça castelhanos, para evitar qualquer fraude ou cumplicidade.
Relativamente à colaboração de pilotos portugueses com o Prior do Crato no exílio, o autor anónimo de uma relação manuscrita redigida muito provavelmente em 1589 confirma que "teniendo Don Antonio algunos pilotos Portugueses platica en las navegaçiones de las conquistas de Castilla y Portugal y la comodidad de navios y gente de mar que ay en Ynglaterra dio la Reyna cartas de marca y licençia para los que de sus vasallos quisiesen salir en corso a las yslas y costas de España, Guinea, Yndias y Brasil y asaltar los navios… cargados de las haziendas de Su Magestad y de vasallos de Castilla y de Portugal hinchiendo de nuestros despojos a Ynglaterra muy continuamente". Ainda nesse ano, o embaixador italiano Lippomano, em Barcelona, informava o Senado da Sereníssima República de que muitos marinheiros e homens do mar de Lisboa se tinham reunido a D. António, Prior do Crato, no exílio, fornecendo-lhe conhecimento e experiência do mar e transportando algum dinheiro para o financiamento das suas acções.
Na viagem do inglês Sir John Burgh às Caraíbas, em 1593, que culminou no desembarque na ilha Margarita, alguns testemunhos espanhóis afirmaram ter estado envolvido um português que lhes servia de guia. As Caraíbas foram o destino da aexpedição do capitão James Langton promovida nesse mesmo ano. De novo, é mencionado, para além da presença de um piloto espanhol que habitara nas Caraíbas, o piloto português Diogo Peres que no ano anterior havia fornecido falsas informações ao Governador espanhol de Santo Domingo sobre as movimentações de Drake e do conde de Cumberland, num eficaz esquema de contra-informação que envolveu as comunicações espanholas em confusão premeditada.
Também a bordo do navio Content, integrado numa pequena frota de corsários ingleses nas Caraíbas, viajou em 1591 um português. Interpelados por uma galé espanhola já ao largo de Cuba, entre o Cabo Corrientes e San Antonio, o lusitano tentou induzi-los em erro, enganando os seus inimigos sobre a nacionalidade do navio. Em Dezembro desse ano Ainda outro piloto português participou na expedição de Thomas Cavendish, na tentativa de atravessar o Estreito de Magalhães embarcou provavelmente no porto brasileiro de Santos.
Navios sem marinheiros, armadas sem mão de obra. Este foi sem dúvida um dos principais obstáculos enfrentados pelas Coroas de Portugal e Espanha. O declínio do poder naval ibérico deveu-se sem dúvida à falta crónica de pilotos, marinheiros e soldados para as Carreiras da Índia ibéricas. Em Portugal, o hábil bispo Vice-Rei D. Pedro de Castilho alerta o rei sobre a falta de pilotos para a Carreira da Índia por repetidas vezes no início do Seiscentos. A situação repetia-se rotas transatlânticas espanholas, com a dificuldade de encontrar pilotos espanhóis experimentados na navegação do Estreito de Magalhães (1600), por exemplo.
Na verdade, as Reais Ordenanças (conjunto de leis reguladoras da navegação) interditavam terminantemente a presença de marinheiros estrangeiros nos navios de Sua Magestade nesta época de Guerra aberta com os poderosos rivais nórdicos (Inglaterra e Províncias Unidas, futura Holanda). Uma lei em relação à qual em breve foi necessário abrir excepções, recorrendo pontualmente a alemães, flamengos e portugueses. Denunciava-se então "la falta que hay de pilotos examinados para todas las nabegaçiones de las Yndias es muy grande, así porque se han muerto muchos como porque la flota de Nueba España…, y el armada real…; y así avía catorçe naos que no los tenían, sino marineros diestros que por su negligençia y poco cuydado no se han examinado". A má preparação dos mesmos vinha denunciada em vária obras espanholas sobre navegação publicadas na primeira metade do séc. XVII.
Com a partida das naus e galeões para a Índia portuguesa em 1601 "havia grande dificultad, porque aunque se havian aprestado nueve para este año los tiempos havian mudado las cosas de manera, que donde a los portugueses antiguamente ninguna cosa era más familiar que este viaje", "no havia agora soldado, ni marinero que quisiese ir en ella: y assi fue necessario usar con ellos de la fuerça el virrey Dom Christoval de Moura, cosa bien importante quando la necessidade lo pide. Desta suerte, parte forçada y parte voluntaria, juntó la gente bastante para aquella armada".
Décadas mais tarde, em 1645, pouco após a Restauração portuguesa, o embaixador espanhol em Londres informou Filipe IV do regresso a Inglaterra de uma expedição pirata bem sucedida às Caraíbas, em que a intervenção de marinheiros portugueses foi indispensável. Passados vinte e um anos, o testemunho do Padre António Vieira revela uma situação semelhante no Norte de África. Vieira comenta, numa apologia redigida durante a sua detenção no cárcere do Santo Ofício (c. 1666), os seus esforços para a libertação dos renegados em poder dos "Turcos" em tempo de D. João IV, "com pouco dispêndio da fazenda e grande utilidade da navegação, pois o Reino está tão falto de marinhagem, que geralmente é a gente de que há mais cativos em Berberia".
Embora o monopólio da navegação e comércio dos impérios ibéricos se tenha diluído (sobretudo no caso português) graças à crescente concorrência movida pela Inglaterra e as Províncias Unidas ao longo da primeira metade do século XVII, os pilotos e marinheiros portugueses mantiveram a sua liderança técnica nas navegações transoceânicas. Essa vantagem conferiu-lhes mesmo um aumento significativo da sua presença na principal rota atlântica, e a mais perseguida pelos corsários, a Carreira de Indias espanhola. No outro lado do globo, Pedro Fernandes Queiroz (ou Quiroz, na sua forma castelhana), um empreendedor cristão-novo natural de Évora, atravessava pela segunda vez o Pacífico na sua última viagem em direcção às Novas Hébridas.
Outros portugueses célebres pelas suas obras literárias e religiosas partilharam o destino de muitos portugueses que atravessaram o Atlântico em busca de uma nova terra prometida, neste caso, o Brasil. Entre 1600 e 1614, Manuel de Sousa Coutinho, mais conhecido por Fr. Luís de Sousa, envolveu-se no activo comércio da América do Sul (possivelmente entre Buenos Aires e o Perú), onde desde muito cedo se encontravam mercadores portugueses entre o Rio da Prata e o Maranhão. Esta sua pouco conhecida experiência no além-mar forneceu os elementos para o poema latino Navegação Antárctica, hoje incompleto.
Meio século mais tarde, por volta de 1666, o Padre António Vieira, a braços com o império português em plena decadência e a intolerância da Inquisição, encontrava ainda satisfação na tarefa destes homens, "que acerca da zona tórrida e dos antípodas ensinaram os pilotos portugueses ao Mundo, sem saberem ler nem escrever, o que não alcançou Aristóteles nem Santo Agostinho, pela diferença dos tempos". O santo apóstolo português dos índios conhecia bem o meio marítimo, e é ele próprio quem o diz, a propósito das suas missões no interior do Brasil que o levaram a navegar pelos rios, "em qualquer canoa de missão, sendo as primeiras peças da matalotagem o altar portátil e o relógio de areia, e a campainha para os exercícios espirituais, conforme as regras e estatutos que fiz por ordem do Padre Geral". Com apenas dezassete anos, recorda Vieira, achara-se "navegando neste tempo água doce e salgada, mais de mil e quatrocentas léguas, fora muitas terras e desertos sempre a pé". Sobre os efeitos da sua actividade, adianta: "Agora me lembra que não só no Maranhão, mas na ilha Terceira, S. Miguel e Graciosa, e em todos os navios em que naveguei, introduzi o rezar o terço do rosário publicamente a coros, aonde se tem pregado esta devoção e quase todos os navios mercantes e das armadas, por indústria daqueles mesmos marinheiros, como eles mesmos mo disseram".
O entusiasmo do espírito de Vieira nunca amainou, mesmo quando confrontado com os ataques da armada holandesa em Salvador da Bahia, no Nordeste do Brasil, em 1624. Apesar da vitória luso-espanhola sobre os invasores, o canto do cisne tinha sido ouvido para o que restava do poder naval ibérico. Anos mais tarde, na desastrosa batalha naval das Dunas (1639), nem a literatura nem as orações puderam evitar o golpe de misericórdia que afundou as últimas esperanças de reerguer ambas potências marítimas ibéricas. Por esta altura, já os caminhos do Oriente eram regularmente percorridos por ingleses e holandeses. Da memória de tantos vultos portugueses que conviveram de perto com os grandes corsários e capitães da época de ouro da marinha à vela, são hoje apenas vagamente vislumbrados por entre episódios ousados e datas famosas um punhado de portugueses que ajudaram a mudar a História do Mundo tal como o conhecemos.
Diário de Leitura:
TORRES RAMÍREZ, Bibiano e PÉREZ-MALLAÍNA-BUENO, Pablo, La Armada del Mar del Sur, Sevilla: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Sevilla: Escuela de Estudios Hispano-Americanos, 1987
SILVA, José Gentil da (ed.), Alguns Elementos para a História do Comércio da Índia de Portugal existentes na Biblioteca Nacional de Madrid, separata dos Estudos de História e Geografia da Expansão Portuguesa, Anais, vol. V, tomo II (Lisboa: Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, 1950)
SOUSA, Fr. Luís de, Anais de D. João III, Lisboa: Livraria-Editora Sá da Costa, 1951
(veja-se também a bibliografia apontada no post I)
P.S.
O Marítimo prossegue a investigação deste tema, que irá ser objecto de artigo mais aprofundado a publicar no próximo ano. A seu tempo, os prezados leitores-mareantes serão informados de mais detalhes sobre este e outros estudos no prelo.
Curiosamente, alguns destes pilotos e muitos marinheiros procuravam então não só fugir das mãos da pesada máquina militar espanhola (na qual encontravam fraca recompensa), como também a ânsia do lucro fácil junto dos navios predadores das potências rivais que defrontavam Espanha e Portugal nos mares.
Em 1588, ano da "Invencível" Armada (que largou de Lisboa no final de Maio), o português Domingos Dias, natural de Aveiro e descrito como "mulato", que servira anteriormente na Carreira da Índia, navegava na esquadra liderada pelo corsário William Irish. Apenas 3 anos antes, o português, do qual nada mais se sabe, servira de piloto no navio de aviso enviado pelo marquês de Santa Cruz a Santo Domingo, aquando do ataque de Drake.
No ano seguinte ao episódio da "Invencível" Armada, o vedor e provedor das obras de fortificação de Setúbal, porto onde era frequente a imposição de embargos sobre os navios, apontou em carta ao rei a dificuldade na recruta de marinheiros em Portugal para as armadas, devido à falta de condições vividas a bordo dos navios do rei. Nas suas palavras, "como es muy notorio y cada dia mas se ba entendiendo la poca voluntad con que los dichos marineros sirven a Vuestra Magestad y eso por la mayor parte se entiende tienen los pueblos y personas que tienen a cargo haçer los dichos marineros".
Os marinheiros práticos escapavam ao serviço da Coroa, recorrendo-se à sua substituição por pessoal menos experiente. Devido a esta situação, "no es de espantar de qualquiera desastre en las naves y de su poco govierno y ser poco beleras pues el corazon de la nave consiste en ser bien marinada". As más condições de vida a bordo dos navios de guerra e a ameaça constante de navios corsários dissuadiram muitos portugueses do embarque nas armadas Reais, optando pela pesca costeira. Nesta época, o oficial espanhol Sarmiento Valladares aconselhava a elaboração de listas da gente de mar e livros de matrícula a ser aplicados nos principais portos do reino e estivessem a cargo de oficiais de justiça castelhanos, para evitar qualquer fraude ou cumplicidade.
Relativamente à colaboração de pilotos portugueses com o Prior do Crato no exílio, o autor anónimo de uma relação manuscrita redigida muito provavelmente em 1589 confirma que "teniendo Don Antonio algunos pilotos Portugueses platica en las navegaçiones de las conquistas de Castilla y Portugal y la comodidad de navios y gente de mar que ay en Ynglaterra dio la Reyna cartas de marca y licençia para los que de sus vasallos quisiesen salir en corso a las yslas y costas de España, Guinea, Yndias y Brasil y asaltar los navios… cargados de las haziendas de Su Magestad y de vasallos de Castilla y de Portugal hinchiendo de nuestros despojos a Ynglaterra muy continuamente". Ainda nesse ano, o embaixador italiano Lippomano, em Barcelona, informava o Senado da Sereníssima República de que muitos marinheiros e homens do mar de Lisboa se tinham reunido a D. António, Prior do Crato, no exílio, fornecendo-lhe conhecimento e experiência do mar e transportando algum dinheiro para o financiamento das suas acções.
Na viagem do inglês Sir John Burgh às Caraíbas, em 1593, que culminou no desembarque na ilha Margarita, alguns testemunhos espanhóis afirmaram ter estado envolvido um português que lhes servia de guia. As Caraíbas foram o destino da aexpedição do capitão James Langton promovida nesse mesmo ano. De novo, é mencionado, para além da presença de um piloto espanhol que habitara nas Caraíbas, o piloto português Diogo Peres que no ano anterior havia fornecido falsas informações ao Governador espanhol de Santo Domingo sobre as movimentações de Drake e do conde de Cumberland, num eficaz esquema de contra-informação que envolveu as comunicações espanholas em confusão premeditada.
Também a bordo do navio Content, integrado numa pequena frota de corsários ingleses nas Caraíbas, viajou em 1591 um português. Interpelados por uma galé espanhola já ao largo de Cuba, entre o Cabo Corrientes e San Antonio, o lusitano tentou induzi-los em erro, enganando os seus inimigos sobre a nacionalidade do navio. Em Dezembro desse ano Ainda outro piloto português participou na expedição de Thomas Cavendish, na tentativa de atravessar o Estreito de Magalhães embarcou provavelmente no porto brasileiro de Santos.
Navios sem marinheiros, armadas sem mão de obra. Este foi sem dúvida um dos principais obstáculos enfrentados pelas Coroas de Portugal e Espanha. O declínio do poder naval ibérico deveu-se sem dúvida à falta crónica de pilotos, marinheiros e soldados para as Carreiras da Índia ibéricas. Em Portugal, o hábil bispo Vice-Rei D. Pedro de Castilho alerta o rei sobre a falta de pilotos para a Carreira da Índia por repetidas vezes no início do Seiscentos. A situação repetia-se rotas transatlânticas espanholas, com a dificuldade de encontrar pilotos espanhóis experimentados na navegação do Estreito de Magalhães (1600), por exemplo.
Na verdade, as Reais Ordenanças (conjunto de leis reguladoras da navegação) interditavam terminantemente a presença de marinheiros estrangeiros nos navios de Sua Magestade nesta época de Guerra aberta com os poderosos rivais nórdicos (Inglaterra e Províncias Unidas, futura Holanda). Uma lei em relação à qual em breve foi necessário abrir excepções, recorrendo pontualmente a alemães, flamengos e portugueses. Denunciava-se então "la falta que hay de pilotos examinados para todas las nabegaçiones de las Yndias es muy grande, así porque se han muerto muchos como porque la flota de Nueba España…, y el armada real…; y así avía catorçe naos que no los tenían, sino marineros diestros que por su negligençia y poco cuydado no se han examinado". A má preparação dos mesmos vinha denunciada em vária obras espanholas sobre navegação publicadas na primeira metade do séc. XVII.
Com a partida das naus e galeões para a Índia portuguesa em 1601 "havia grande dificultad, porque aunque se havian aprestado nueve para este año los tiempos havian mudado las cosas de manera, que donde a los portugueses antiguamente ninguna cosa era más familiar que este viaje", "no havia agora soldado, ni marinero que quisiese ir en ella: y assi fue necessario usar con ellos de la fuerça el virrey Dom Christoval de Moura, cosa bien importante quando la necessidade lo pide. Desta suerte, parte forçada y parte voluntaria, juntó la gente bastante para aquella armada".
Décadas mais tarde, em 1645, pouco após a Restauração portuguesa, o embaixador espanhol em Londres informou Filipe IV do regresso a Inglaterra de uma expedição pirata bem sucedida às Caraíbas, em que a intervenção de marinheiros portugueses foi indispensável. Passados vinte e um anos, o testemunho do Padre António Vieira revela uma situação semelhante no Norte de África. Vieira comenta, numa apologia redigida durante a sua detenção no cárcere do Santo Ofício (c. 1666), os seus esforços para a libertação dos renegados em poder dos "Turcos" em tempo de D. João IV, "com pouco dispêndio da fazenda e grande utilidade da navegação, pois o Reino está tão falto de marinhagem, que geralmente é a gente de que há mais cativos em Berberia".
Embora o monopólio da navegação e comércio dos impérios ibéricos se tenha diluído (sobretudo no caso português) graças à crescente concorrência movida pela Inglaterra e as Províncias Unidas ao longo da primeira metade do século XVII, os pilotos e marinheiros portugueses mantiveram a sua liderança técnica nas navegações transoceânicas. Essa vantagem conferiu-lhes mesmo um aumento significativo da sua presença na principal rota atlântica, e a mais perseguida pelos corsários, a Carreira de Indias espanhola. No outro lado do globo, Pedro Fernandes Queiroz (ou Quiroz, na sua forma castelhana), um empreendedor cristão-novo natural de Évora, atravessava pela segunda vez o Pacífico na sua última viagem em direcção às Novas Hébridas.
Outros portugueses célebres pelas suas obras literárias e religiosas partilharam o destino de muitos portugueses que atravessaram o Atlântico em busca de uma nova terra prometida, neste caso, o Brasil. Entre 1600 e 1614, Manuel de Sousa Coutinho, mais conhecido por Fr. Luís de Sousa, envolveu-se no activo comércio da América do Sul (possivelmente entre Buenos Aires e o Perú), onde desde muito cedo se encontravam mercadores portugueses entre o Rio da Prata e o Maranhão. Esta sua pouco conhecida experiência no além-mar forneceu os elementos para o poema latino Navegação Antárctica, hoje incompleto.
Meio século mais tarde, por volta de 1666, o Padre António Vieira, a braços com o império português em plena decadência e a intolerância da Inquisição, encontrava ainda satisfação na tarefa destes homens, "que acerca da zona tórrida e dos antípodas ensinaram os pilotos portugueses ao Mundo, sem saberem ler nem escrever, o que não alcançou Aristóteles nem Santo Agostinho, pela diferença dos tempos". O santo apóstolo português dos índios conhecia bem o meio marítimo, e é ele próprio quem o diz, a propósito das suas missões no interior do Brasil que o levaram a navegar pelos rios, "em qualquer canoa de missão, sendo as primeiras peças da matalotagem o altar portátil e o relógio de areia, e a campainha para os exercícios espirituais, conforme as regras e estatutos que fiz por ordem do Padre Geral". Com apenas dezassete anos, recorda Vieira, achara-se "navegando neste tempo água doce e salgada, mais de mil e quatrocentas léguas, fora muitas terras e desertos sempre a pé". Sobre os efeitos da sua actividade, adianta: "Agora me lembra que não só no Maranhão, mas na ilha Terceira, S. Miguel e Graciosa, e em todos os navios em que naveguei, introduzi o rezar o terço do rosário publicamente a coros, aonde se tem pregado esta devoção e quase todos os navios mercantes e das armadas, por indústria daqueles mesmos marinheiros, como eles mesmos mo disseram".
O entusiasmo do espírito de Vieira nunca amainou, mesmo quando confrontado com os ataques da armada holandesa em Salvador da Bahia, no Nordeste do Brasil, em 1624. Apesar da vitória luso-espanhola sobre os invasores, o canto do cisne tinha sido ouvido para o que restava do poder naval ibérico. Anos mais tarde, na desastrosa batalha naval das Dunas (1639), nem a literatura nem as orações puderam evitar o golpe de misericórdia que afundou as últimas esperanças de reerguer ambas potências marítimas ibéricas. Por esta altura, já os caminhos do Oriente eram regularmente percorridos por ingleses e holandeses. Da memória de tantos vultos portugueses que conviveram de perto com os grandes corsários e capitães da época de ouro da marinha à vela, são hoje apenas vagamente vislumbrados por entre episódios ousados e datas famosas um punhado de portugueses que ajudaram a mudar a História do Mundo tal como o conhecemos.
Diário de Leitura:
TORRES RAMÍREZ, Bibiano e PÉREZ-MALLAÍNA-BUENO, Pablo, La Armada del Mar del Sur, Sevilla: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Sevilla: Escuela de Estudios Hispano-Americanos, 1987
SILVA, José Gentil da (ed.), Alguns Elementos para a História do Comércio da Índia de Portugal existentes na Biblioteca Nacional de Madrid, separata dos Estudos de História e Geografia da Expansão Portuguesa, Anais, vol. V, tomo II (Lisboa: Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, 1950)
SOUSA, Fr. Luís de, Anais de D. João III, Lisboa: Livraria-Editora Sá da Costa, 1951
(veja-se também a bibliografia apontada no post I)
P.S.
O Marítimo prossegue a investigação deste tema, que irá ser objecto de artigo mais aprofundado a publicar no próximo ano. A seu tempo, os prezados leitores-mareantes serão informados de mais detalhes sobre este e outros estudos no prelo.
Subscrever:
Mensagens (Atom)