domingo, outubro 12, 2003

Os Livros e o Fascínio do Mar (II)

É sobretudo no século XVI, quando a literatura portuguesa se enriquece com novas temáticas e símbolos, que o mar passa a ser ambiente de fundo e é cantado por historiadores e poetas. O Mar desdobra-se então em múltiplos aspectos: Saudade, cântico heróico, mística religiosa, simbologia, imagem do infinito, interpretação nacionalista e social. O tema do Mar na Literatura nacional torna-se uma constante histórica, sintetizando muitas características gerais da identidade portuguesa (tragédia, fatalidade, emigração, negócio e religiosidade), incorporadas no modo de "ser português".

Como consequência da longa permanência no mar e do continuo convívio com ele, o tema das navegações e naufrágios encontra-se fortemente enraizado na Literatura Portuguesa .

Foi justamente com uma referência ao "Naufrágio de Sepúlveda" (incluído mais tarde na História Trágico-Marítima) que Camões ilustrou n'Os Lusíadas (Canto V, est. 44) uma das terríveis profecias do gigante Adamastor, guardião do Cabo das Tormentas:

"Antes, em vossas naus vereis, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
que o menor mal de todos seja a morte!"


O naufrágio dos portugueses seria uma das consequências a atingir os navegantes que se atreveram a desafiar a fronteira dos mares desconhecidos.

Na verdade, o conhecimento dos longínquos novos mundos e culturas foi trazido do outro lado dos mares em primeira mão para a Europa através de personagens que experimentaram as andanças de um império essencialmente marítimo. Os encontros e os acidentes de percurso sucederam-se em resultado do confronto com uma realidade por vezes dura e inquietante, mas foi o génio criador e narrativo que fixou para a posteridade de maneira detalhada e envolvente toda essa experiência humana. Para além do desenrolar alucinante da acção, as descrições são ricas em elementos geográficos e sócio-culturais que, na sua época, constituíram uma autêntica revelação para o mundo Ocidental.

A inesgotável curiosidade dos viajantes marítimos depressa se difundiu, encontrando um público ávido de todo o exotismo e novidade dos mundos recém-descobertos.

Os relatos de viagem que marcam a aventura dos navegadores do séc. XVI são inúmeros. Todos eles estão ligados à acção do homem, ao invés dos tradicionais romances de cavalaria da Idade Média, de carácter alegórico e espiritual. Pero Vaz de Caminha foi autor porventura do mais famoso, a Carta do Achamento da Terra de Vera Cruz (1500), endereçada ao rei D. Manuel, na viagem em que Pedro Álvares Cabral levou as naus à costa sul-americana, hoje conhecida por Brasil.

A Literatura de Viagens é um dos testemunhos mais ricos das relações de Portugal com os Oceanos. Quer seja por uma perspectiva histórica ou literária, o nosso conhecimento não deixa de alargar os horizontes relativos aos caminhos trilhados no passado. Mas, sempre que viajamos por este tipo de literatura, um vulto singular destaca-se: Fernão Mendes Pinto, autor da memorável Peregrinação.

O autor, nascido cerca de 1510, depois de trazido para Lisboa com 10 ou 12 anos de idade, embarcou para a Índia em 1537. Daí seguiu para o Oriente e do que lá passou nos dá conta na sua obra. Após 21 anos de navegações, desventuras, naufrágios, combates e cativeiro, regressou a Portugal. Já casado, fixou-se em Almada, escrevendo o livro que o tornaria famoso. Morreu em 1583.

Trazendo até aos nossos dias uma imagem muito realista do mundo no séc. XVI, inovando na literatura pela riqueza descritiva da vida e costumes dos povos orientais, Fernão Mendes Pinto tornou-se no grande precursor, a quase quatrocentos anos de distância, de outros escritores portugueses, como Wenceslau de Morais (séc. XIX), que descreveram a vida e os costumes dos povos orientais. Por outro lado, também se contam neste seu relato semi-autobiográfico nada menos de 14 naufrágios nos mares do Índico e da China. O próprio Mendes Pinto encontrou-se a bordo de 11 deles.

Paisagens, costumes, naufrágios e batalhas, tudo é descrito com particular realismo. Ao lado de quadros em que o leitor é colocado diante de maravilhas e reinos fantásticos, surgem os quadros relativos aos portugueses aventureiros capazes de todas as ousadias, pelas terras do Oriente, fascinados pelo poder e pela riqueza, não ocultando sequer as humilhações por que passou, roubos e violências em que tomou parte, no desejo de deixar um registo dentro dos limites do verosímil. Considerada na época um produto da imaginação do autor, está actualmente comprovada o carácter fidedigno da Peregrinação pela moderna investigação histórica, que baseou as investigações em alguns textos japoneses e em cartas de missionários do Japão.

O mundo em que o leitor viaja de mãos dadas com Fernão Mendes Pinto é um misto de verdade e fantasia. Espécie de anti-herói, dominado pelo instinto de sobrevivência, infringe as leis da moral e caminha na artimanha, na crueldade, na mentira. Este herói mal-aventurado, tão ao gosto do espírito português, termina a sua peregrinação desiludido com a vida de aventureiro, com os trabalhos e perigos por que passou.

A Expansão marítima portuguesa suscitou uma pluralidade de reflexões que oscilavam entre o encómio e a crítica. Um exemplo de uma voz atenta aos desvios da sociedade portuguesa é Sá de Miranda, humanista que introduziu em Portugal o soneto e outras formas clássicas do movimento renascentista italiano. Salientamos, pelo tom moral e sentencioso, as suas «Cartas». Especialmente crítico com a situação do país, improdutivo e totalmente dependente do comércio com a Índia, incompatibiliza-se com a vida cortesã e retira-se para o campo.

Estas críticas estão bem expressas na Carta V, «A Pêro de Carvalho», quando afirma «ora revolvendo o mar, / ora revolvendo a terra (...) porque vos vendeu a cobiça / a mar bravo e a ventos bravos».

Sá de Miranda é um observador desalentado com a realidade de um país abandonado, responsabilizando de igual forma o comércio do Oriente pelo despovoamento do reino e abandono da agricultura, derivados do «cheiro da canela»), cujo significado seria o do enriquecimento rápido e aquisição menos digna de sinais de prosperidade (argumentos retomados de igual forma por Camões, no discurso do Velho do Restelo). Sá de Miranda chega a apelidar os marinheiros de vagabundos que desperdiçavam a sua vida associando-os por analogia a símios por treparem aos mastros e enxárcias ( «Os marinheiros vadios / que vilmente a vida apreçam, / pelas cordas dos navios, / volteiam como bugios») citando em contraste com a sua vida errante e aventureira, os «santos suores» dos lavradores.

No entanto, Sá de Miranda não deixou de admirar a coragem e ousadia com que os seus contemporâneos sulcaram os oceanos, desvendando regiões inexploradas nos confins do planeta, designadamente nos versos «Gente que não teme nada, / com tudo se desafia, / por mares sem fundos nada; / passou a zona torrada, / anda por passar a fria»,ou seja, as latitudes extremas do planeta.

P.S.
Como complemento do "post" anterior, aqui fica a indicação do texto integral do "Naufragio" de Alvar Núñez Cabeza de Vaca.
Pena é que o mesmo não aconteça com os textos de Sá de Miranda ou Fernão Mendes Pinto, entre tantos outros clássicos da nossa literatura.

Diário de Leitura:

LANCIANI, Giulia, Os Relatos de Naufrágios na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI e XVII (Lisboa, 1979)

OSÓRIO, João de Castro, O Além-Mar na Literatura Portuguesa (Lisboa,1948)

PALMA-FERREIRA, João, Naufrágios, Viagens, Fantasias e Batalhas (Lisboa, s.d.)

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