terça-feira, outubro 07, 2003

Senhores do Mar (III)

A verdade é que já em 1581, logo após a conquista espanhola de Portugal, o simples facto de se anunciar a preparação da partida de uma armada provocava a fuga de potenciais marinheiros, "porque todos aborreçen el yr a servir en armadas que con aver mas de quinientos marineros en los navios que truxe a mi cargo y estar tan neçessitados y no tener de presente en que se ocupar hasta agora no ha avido ninguno que quiera seruir antes se an huydo muchos en entendiendo que se azia Armada". No final da década seguinte, um alto oficial espanhol manifestava a sua frustração de que a falta de reconhecimento e de recompensas para com os marinheiros da armada espanhola constituíam a principal causa da ineficácia do poder naval espanhol.

Curiosamente, alguns destes pilotos e muitos marinheiros procuravam então não só fugir das mãos da pesada máquina militar espanhola (na qual encontravam fraca recompensa), como também a ânsia do lucro fácil junto dos navios predadores das potências rivais que defrontavam Espanha e Portugal nos mares.

Em 1588, ano da "Invencível" Armada (que largou de Lisboa no final de Maio), o português Domingos Dias, natural de Aveiro e descrito como "mulato", que servira anteriormente na Carreira da Índia, navegava na esquadra liderada pelo corsário William Irish. Apenas 3 anos antes, o português, do qual nada mais se sabe, servira de piloto no navio de aviso enviado pelo marquês de Santa Cruz a Santo Domingo, aquando do ataque de Drake.
No ano seguinte ao episódio da "Invencível" Armada, o vedor e provedor das obras de fortificação de Setúbal, porto onde era frequente a imposição de embargos sobre os navios, apontou em carta ao rei a dificuldade na recruta de marinheiros em Portugal para as armadas, devido à falta de condições vividas a bordo dos navios do rei. Nas suas palavras, "como es muy notorio y cada dia mas se ba entendiendo la poca voluntad con que los dichos marineros sirven a Vuestra Magestad y eso por la mayor parte se entiende tienen los pueblos y personas que tienen a cargo haçer los dichos marineros".

Os marinheiros práticos escapavam ao serviço da Coroa, recorrendo-se à sua substituição por pessoal menos experiente. Devido a esta situação, "no es de espantar de qualquiera desastre en las naves y de su poco govierno y ser poco beleras pues el corazon de la nave consiste en ser bien marinada". As más condições de vida a bordo dos navios de guerra e a ameaça constante de navios corsários dissuadiram muitos portugueses do embarque nas armadas Reais, optando pela pesca costeira. Nesta época, o oficial espanhol Sarmiento Valladares aconselhava a elaboração de listas da gente de mar e livros de matrícula a ser aplicados nos principais portos do reino e estivessem a cargo de oficiais de justiça castelhanos, para evitar qualquer fraude ou cumplicidade.

Relativamente à colaboração de pilotos portugueses com o Prior do Crato no exílio, o autor anónimo de uma relação manuscrita redigida muito provavelmente em 1589 confirma que "teniendo Don Antonio algunos pilotos Portugueses platica en las navegaçiones de las conquistas de Castilla y Portugal y la comodidad de navios y gente de mar que ay en Ynglaterra dio la Reyna cartas de marca y licençia para los que de sus vasallos quisiesen salir en corso a las yslas y costas de España, Guinea, Yndias y Brasil y asaltar los navios… cargados de las haziendas de Su Magestad y de vasallos de Castilla y de Portugal hinchiendo de nuestros despojos a Ynglaterra muy continuamente". Ainda nesse ano, o embaixador italiano Lippomano, em Barcelona, informava o Senado da Sereníssima República de que muitos marinheiros e homens do mar de Lisboa se tinham reunido a D. António, Prior do Crato, no exílio, fornecendo-lhe conhecimento e experiência do mar e transportando algum dinheiro para o financiamento das suas acções.

Na viagem do inglês Sir John Burgh às Caraíbas, em 1593, que culminou no desembarque na ilha Margarita, alguns testemunhos espanhóis afirmaram ter estado envolvido um português que lhes servia de guia. As Caraíbas foram o destino da aexpedição do capitão James Langton promovida nesse mesmo ano. De novo, é mencionado, para além da presença de um piloto espanhol que habitara nas Caraíbas, o piloto português Diogo Peres que no ano anterior havia fornecido falsas informações ao Governador espanhol de Santo Domingo sobre as movimentações de Drake e do conde de Cumberland, num eficaz esquema de contra-informação que envolveu as comunicações espanholas em confusão premeditada.

Também a bordo do navio Content, integrado numa pequena frota de corsários ingleses nas Caraíbas, viajou em 1591 um português. Interpelados por uma galé espanhola já ao largo de Cuba, entre o Cabo Corrientes e San Antonio, o lusitano tentou induzi-los em erro, enganando os seus inimigos sobre a nacionalidade do navio. Em Dezembro desse ano Ainda outro piloto português participou na expedição de Thomas Cavendish, na tentativa de atravessar o Estreito de Magalhães embarcou provavelmente no porto brasileiro de Santos.

Navios sem marinheiros, armadas sem mão de obra. Este foi sem dúvida um dos principais obstáculos enfrentados pelas Coroas de Portugal e Espanha. O declínio do poder naval ibérico deveu-se sem dúvida à falta crónica de pilotos, marinheiros e soldados para as Carreiras da Índia ibéricas. Em Portugal, o hábil bispo Vice-Rei D. Pedro de Castilho alerta o rei sobre a falta de pilotos para a Carreira da Índia por repetidas vezes no início do Seiscentos. A situação repetia-se rotas transatlânticas espanholas, com a dificuldade de encontrar pilotos espanhóis experimentados na navegação do Estreito de Magalhães (1600), por exemplo.

Na verdade, as Reais Ordenanças (conjunto de leis reguladoras da navegação) interditavam terminantemente a presença de marinheiros estrangeiros nos navios de Sua Magestade nesta época de Guerra aberta com os poderosos rivais nórdicos (Inglaterra e Províncias Unidas, futura Holanda). Uma lei em relação à qual em breve foi necessário abrir excepções, recorrendo pontualmente a alemães, flamengos e portugueses. Denunciava-se então "la falta que hay de pilotos examinados para todas las nabegaçiones de las Yndias es muy grande, así porque se han muerto muchos como porque la flota de Nueba España…, y el armada real…; y así avía catorçe naos que no los tenían, sino marineros diestros que por su negligençia y poco cuydado no se han examinado". A má preparação dos mesmos vinha denunciada em vária obras espanholas sobre navegação publicadas na primeira metade do séc. XVII.

Com a partida das naus e galeões para a Índia portuguesa em 1601 "havia grande dificultad, porque aunque se havian aprestado nueve para este año los tiempos havian mudado las cosas de manera, que donde a los portugueses antiguamente ninguna cosa era más familiar que este viaje", "no havia agora soldado, ni marinero que quisiese ir en ella: y assi fue necessario usar con ellos de la fuerça el virrey Dom Christoval de Moura, cosa bien importante quando la necessidade lo pide. Desta suerte, parte forçada y parte voluntaria, juntó la gente bastante para aquella armada".

Décadas mais tarde, em 1645, pouco após a Restauração portuguesa, o embaixador espanhol em Londres informou Filipe IV do regresso a Inglaterra de uma expedição pirata bem sucedida às Caraíbas, em que a intervenção de marinheiros portugueses foi indispensável. Passados vinte e um anos, o testemunho do Padre António Vieira revela uma situação semelhante no Norte de África. Vieira comenta, numa apologia redigida durante a sua detenção no cárcere do Santo Ofício (c. 1666), os seus esforços para a libertação dos renegados em poder dos "Turcos" em tempo de D. João IV, "com pouco dispêndio da fazenda e grande utilidade da navegação, pois o Reino está tão falto de marinhagem, que geralmente é a gente de que há mais cativos em Berberia".

Embora o monopólio da navegação e comércio dos impérios ibéricos se tenha diluído (sobretudo no caso português) graças à crescente concorrência movida pela Inglaterra e as Províncias Unidas ao longo da primeira metade do século XVII, os pilotos e marinheiros portugueses mantiveram a sua liderança técnica nas navegações transoceânicas. Essa vantagem conferiu-lhes mesmo um aumento significativo da sua presença na principal rota atlântica, e a mais perseguida pelos corsários, a Carreira de Indias espanhola. No outro lado do globo, Pedro Fernandes Queiroz (ou Quiroz, na sua forma castelhana), um empreendedor cristão-novo natural de Évora, atravessava pela segunda vez o Pacífico na sua última viagem em direcção às Novas Hébridas.

Outros portugueses célebres pelas suas obras literárias e religiosas partilharam o destino de muitos portugueses que atravessaram o Atlântico em busca de uma nova terra prometida, neste caso, o Brasil. Entre 1600 e 1614, Manuel de Sousa Coutinho, mais conhecido por Fr. Luís de Sousa, envolveu-se no activo comércio da América do Sul (possivelmente entre Buenos Aires e o Perú), onde desde muito cedo se encontravam mercadores portugueses entre o Rio da Prata e o Maranhão. Esta sua pouco conhecida experiência no além-mar forneceu os elementos para o poema latino Navegação Antárctica, hoje incompleto.

Meio século mais tarde, por volta de 1666, o Padre António Vieira, a braços com o império português em plena decadência e a intolerância da Inquisição, encontrava ainda satisfação na tarefa destes homens, "que acerca da zona tórrida e dos antípodas ensinaram os pilotos portugueses ao Mundo, sem saberem ler nem escrever, o que não alcançou Aristóteles nem Santo Agostinho, pela diferença dos tempos". O santo apóstolo português dos índios conhecia bem o meio marítimo, e é ele próprio quem o diz, a propósito das suas missões no interior do Brasil que o levaram a navegar pelos rios, "em qualquer canoa de missão, sendo as primeiras peças da matalotagem o altar portátil e o relógio de areia, e a campainha para os exercícios espirituais, conforme as regras e estatutos que fiz por ordem do Padre Geral". Com apenas dezassete anos, recorda Vieira, achara-se "navegando neste tempo água doce e salgada, mais de mil e quatrocentas léguas, fora muitas terras e desertos sempre a pé". Sobre os efeitos da sua actividade, adianta: "Agora me lembra que não só no Maranhão, mas na ilha Terceira, S. Miguel e Graciosa, e em todos os navios em que naveguei, introduzi o rezar o terço do rosário publicamente a coros, aonde se tem pregado esta devoção e quase todos os navios mercantes e das armadas, por indústria daqueles mesmos marinheiros, como eles mesmos mo disseram".

O entusiasmo do espírito de Vieira nunca amainou, mesmo quando confrontado com os ataques da armada holandesa em Salvador da Bahia, no Nordeste do Brasil, em 1624. Apesar da vitória luso-espanhola sobre os invasores, o canto do cisne tinha sido ouvido para o que restava do poder naval ibérico. Anos mais tarde, na desastrosa batalha naval das Dunas (1639), nem a literatura nem as orações puderam evitar o golpe de misericórdia que afundou as últimas esperanças de reerguer ambas potências marítimas ibéricas. Por esta altura, já os caminhos do Oriente eram regularmente percorridos por ingleses e holandeses. Da memória de tantos vultos portugueses que conviveram de perto com os grandes corsários e capitães da época de ouro da marinha à vela, são hoje apenas vagamente vislumbrados por entre episódios ousados e datas famosas um punhado de portugueses que ajudaram a mudar a História do Mundo tal como o conhecemos.


Diário de Leitura:

TORRES RAMÍREZ, Bibiano e PÉREZ-MALLAÍNA-BUENO, Pablo, La Armada del Mar del Sur, Sevilla: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Sevilla: Escuela de Estudios Hispano-Americanos, 1987

SILVA, José Gentil da (ed.), Alguns Elementos para a História do Comércio da Índia de Portugal existentes na Biblioteca Nacional de Madrid, separata dos Estudos de História e Geografia da Expansão Portuguesa, Anais, vol. V, tomo II (Lisboa: Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, 1950)

SOUSA, Fr. Luís de, Anais de D. João III, Lisboa: Livraria-Editora Sá da Costa, 1951

(veja-se também a bibliografia apontada no post I)


P.S.
O Marítimo prossegue a investigação deste tema, que irá ser objecto de artigo mais aprofundado a publicar no próximo ano. A seu tempo, os prezados leitores-mareantes serão informados de mais detalhes sobre este e outros estudos no prelo.

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