segunda-feira, março 29, 2004

Descrição do Natural: Percursos do Olhar e do Saber (II)

A Ciência Ilustrada


No século das Luzes, cientistas e estudantes viajaram pelo globo numa multiplicidade de expedições em busca de novas espécies piscícolas para catalogar. Com o progressivo aumento de novas descobertas no campo da Ictiologia, os primeiros biólogos confrontaram-se com a imensa tarefa de estabelecer e coordenar uma única grande matriz de classificação alargada capaz de albergar uma expansão contínua de espécies conhecidas.

Das compilações às sistematizações e pesquisas aprofundadas, foram-se sucedendo obras de teor cada vez mais complexo e métodos mais rigorosos. A ilustração toambém acompanhou a evolução qualitativa. Curiosamente, antes da invenção da litografia, o alto nível de detalhe nas pinturas a óleo e aguarelas perdia-se na técnica limitada de impressão em série de gravuras preparadas sobre blocos de madeira. Por isso, a mão do artista e as obras únicas mantiveram-se como instrumento indispensável, preservando todo o esplendor das espécies retratadas.



Aprecie-se por  map33_07.jpgexemplo, a qualidade deste exemplar de "Chaetodon striatus" desenhado em 1754, proveniente da obra de Peter Artedi
(1705-1735), aluno de Linné fundador da taxonomia moderna (sistema universal de classificação das espécies animais) que identificou cinco Ordens de "peixes" (em que incluiu os cetáceos), dividindo-os em géneros respectivos. Ironicamente, Artedi afogou-se com apenas 30 anos num canal de Amsterdão mas, graças aos cuidados do seu Mestre e amigo Linnaeus os seus manuscritos intitulados "Bibliotheca Ichthyologica" e "Philosophia Ichthyologica" publicaram-se em 1738 sob o título "Ichthyologia sive opera omnia piscibus" (exemplar da Bibliothèque Nationale de France acessível "online"), com a biografia de Artedi. Nestes estudos fundamentais, Artedi analisou em extensa bibliografia crítica as publicações científicas que o precederam e estabeleceu as modernas definições de Ictiologia e descrições dos peixes segundo características específicas, que resultaram numa actualização metódica desta disciplina.



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Na Época das Luzes, a fauna marinha vestiu-se de um colorido extravagante, particularmente bem ilustrada nesta soberba segunda edição (Amsterdam, 1754) de "Poissons, Écrevisses et Crabes, de diverses couleurs et figures extraordinaires, que l'on trouve autour des Isles Moluques et sur les côtes des Terres Australes" (cuja primeira edição data de 1719) do naturalista francês Louis Renard (1678-1746), a primeira obra consagrada ao estudo dos peixes integralmente a cores. Nas suas páginas, guarda-se o registo de perto de meio milhar de espécies de peixes e crustáceos marinhos tropicais existentes nas antigas ilhas Molucas (actual Indonésia) e Austrália. Imagens obtidas do exemplar da Biblioteca da Universidade de Glasgow.

A obra de Renard é, paradoxalmente, uma das mais edições raras e das mais famosas sobre História natural, mas vai um pouco além do estrito campo científico. De facto, contém a deliciosa curiosidade de uma avaliação degustativa própria a cada espécie, incluindo uma porção de receitas breves para preparação adequada de muitos dos peixes representados, característica verdadeiramente única na historiografia zoológica.

Não está, porém, isenta de várias imprecisões científicas e algumas fantasias.


Tome-se como exemplo a gravura de uma sereia: de acordo com a respectiva legenda, este ser fantástico foi recolhido nas costas do Bornéo, na província de Amboino e media 1,5 metros. Depois de capturado, terá sobrevivido junto à costa num tanque de água durante 4 dias e 7 horas, soltando ocasionalmente guinchos semelhantes aos de um rato. Tendo-se recusado a comer (apesar de lhe darem peixes pequenos, moluscos e caranguejos), acabou por morrer de inanição. O artista confessa que, após a morte da sereia, lhe levantou as barbatanas anteriores e posteriores, revelando as suas semelhanças com as de uma mulher. Segundo o autor, outros testemunhos citados confirmaram-lhe a existência de sereias.



Este Imperador ou Peixe-Anjo Imperial ("Pomacanthus Imperator"), conhecido no séc. XVIII por «Imperador do Japão», exibindo as magníficas listas azuis e douradas de um exemplar adulto (as dos juvenis são em preto e branco) provém de um magnífico compêndio ilustrado, "Ichtyologie ou Histoire Naturelle Generale et Particulière, des Poissons" (1785-1797). O seu autor, o médico alemão Marcus Eliezar Bloch (1723-1799), realizou estas 432 ilustrações realçando-as a ouro e prata de modo a simular o brilho natural das escamas de diversas espécies. Graças ao apoio de grandes mecenas, entre os quais se contou o rei da Prússia Frederico o Grande, o autor conseguiu adquirir inúmeros espécimens provenientes dos continentes europeu e americano e do Extremo-Oriente. Bloch introduziu 19 novos nomes genéricos de espécies de peixes, muitos dos quais se mantêm ainda hoje.


Curiosamente, Bloch só se dedicou ao estudo dos peixes aos 57 anos, tendo-se decidido a registar descrições e ilustrações exaustivas de todas as espécies do seu conhecimento. A sua primeira grande pesquisa centrou-se na fauna aquática alemã, mais próxima de si. Já o seu estudo alargado de espécies de mares distantes, surgidas pela primeira vez no "Allgemeine Naturgeschichte der Fische" (1782-1795), baseou-se em grande parte no trabalho de outros autores, apresentando por isso muitas incorrecções. No entanto, este estudo permaneceu uma referência no campo da Ictiologia por mais de 50 anos. A sua "Ichthyologia" (como ficou conhecida) foi dada à estampa como simples série de ilustrações em vários volumes, e após a sua morte, o seu colega Johann Schneider publicou o sistema taxonómico com o nome de "M. E. Blochii Systemae Ichthyologiae", no qual descreve nada menos de 1.519 espécies de peixes.

A propósito, visite-se aqui uma galeria com algumas ilustrações da obra de Bloch. E outras ilustrações na Biblioteca da Universidade de Heidelberg.


Eis uma das espécies (a lembrar outra por nós "postada" há semanas) observadas na Austrália pelo austríaco Ferdinand Lucas Bauer (1760-1826) entre 1801 e 1803.

fl040019.jpg O "Marítimo" deixa a sugestão aos seus leitores para uma visita virtual em Animação 3D ao HMS «Investigator» aqui e uma fantástica galeria de fotos do álbum de peixes Gradientes e Texturas - Ilustração Científica e Design de Comunicação é a primeira empresa portuguesa especialmente vocacionada para prestação de serviços e formação na área da Comunicação de natureza científica e ilustração de História Natural) e Pedro Salgado, cujo trabalho é internacionalmente reconhecido e tem promovido no nosso país diversos cursos de Ilustração Científica. Mais um pretexto para visitar o Oceanário de Lisboa, onde se podem apreciar diversas ilustrações suas nos paineis explicativos. Para os mais curiosos, fica a entrevista com Pedro Salgado sobre a sua actividade.

Ontem como hoje, a ilustração da Ciência permanece um trabalho de artesão, paciente e dedicado. Uma Arte com método e história...

quinta-feira, março 25, 2004

Actualizações, Agradecimentos & Sugestões

Afundamento do «Graf Spee»
A BBC dá-nos as últimas notícias sobre o ambicioso projecto de recuperação integral do cruzador alemão da II Guerra Mundial «Graf Spee» afundado ao largo de Montevideo, no Uruguai.



A torre de comunicações do navio foi retirada com sucesso, embora a equipa se tenha deparado com condições adversas, tais como fortes correntes_39861404_grafspee1-ap300.jpg marítimas e visibilidade quase nula. Veja-se a galeria de imagens sobre o navio e tripulação. Mundo Viking De épocas mais remotas, assinalam-se as notícias de uma campanha de escavação arqueológica num local de enterramento de uma mulher Viking datado do séc. X na baixa de Pskov, no Noroeste da Rússia, segundo o "Pravda", assim como a descoberta dos vestígios de um porto Viking com 1.000 anos na Noruega, situado em Faanestangen, próximo da cidade de Trondheim, cerca de 400 quilómetros a Norte de Oslo. Notícia do "Guardian".

Agradecimentos devidos
...aos "links" dos seguintes blogoespaços recém-chegados ao nosso conhecimento: Azelhas do mar, Coisas Simples, "Fio de Ariana", "Sesimbra" e "Tempore".

Outra boa surpresa que veio enriquecer este nosso Mar virtual foi desvendada há relativamente pouco tempo sob o nome de "Livro das Horas", obra-prima da ilustríssima Abadessa do Convento. Impõe-se uma visita a este vetusto lugar de culto.
Quanto ao "blog" da Teoricamente possuída, exemplarmente remodelado e revigorado com uma inovadora galeria ilustrada dos "blogs" nacionais.

Sugestões
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Embora o Museu de Arqueologia e Etnografia de Distrito de Setúbal (MAEDS) ainda não disponha de um "site", existe algum conteúdo acessível "online" e podem consultar-se aqui informações de interesse sobre o património arqueológico local.

Para os amantes da história marítima da Antiguidade, deixo a notícia de que o MAEDS promove um simpósio internacional dedicado à «Produção e comércio de preparados piscícolas durante a Proto-história e a Época Romana no Ocidente da Península Ibérica», que se realiza de 7 a 9 de Maio, em homenagem a Françoise Mayet.

"O presente Simpósio procederá a um balanço do estado dos conhecimentos sobre as economias marítimas que se desenvolveram no Ocidente da Península Ibérica durante a Proto-história e a Época Romana, através da apresentação de sínteses e de estudos de caso ainda inéditos; será realizado em homenagem à Arqueóloga Doutora Françoise Mayet.

O calendário proposto para este forum de reflexão e debate justifica-se após a conclusão do programa de investigação luso-francês, levado a cabo pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS) e pela Missão Arqueológica Francesa em Portugal, na última década, com a colaboração do Ministério dos Negócios Estrangeiros de França, do Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR) e da Fundação Calouste Gulbenkian, sob a direcção de Françoise Mayet e Carlos Tavares da Silva. O referido programa consubstanciou-se em trabalhos de prospecção e escavação arqueológicas, estudos e publicações que abrangeram sítios fundamentais para a Proto-história da Península Ibérica, como a feitoria fenícia de Abul, até então inédita, e diversos estabelecimentos romanos, quer de produção de ânforas, como Abul e Herdade do Pinheiro, quer de preparação de salgas de peixe, como Tróia.

As conferências, comunicações e debates serão publicados no volume de Actas do Simpósio (número especial da revista «Setúbal Arqueológica»)."

Bom proveito.

segunda-feira, março 22, 2004

Descrição do Natural: Percursos do Olhar e do Saber (I)

Vida Marinha na Antiguidade


A primeira descrição de cariz científico sobre peixes ocorre pela mão de Aristóteles, que mencionou no séc. IV a.C. diversos factos acerca de 118 espécies, o que lhe valeu ser reconhecido na época moderna como o primeiro grande antecessor dos zoólogos.

A partir das observações sistemáticas realizadas ao longo de 5 anos no "habitat" natural da ilha de Lesbos, no Mar Egeu, o filósofo grego redige a "História dos Animais" "Historia Animalum"; outra transcrição online aqui) em 350 a.C..

Na sua escola de Atenas, fundada sob o reinado de Alexandre o Grande, Aristóteles prosseguiu as pesquisas do mundo animal, desenvolvendo um método eficaz e rigoroso e procedendo a dissecções, contribuindo para uma classificação das espécies segundo a complexidade da sua alma.






Os Peixes no Renascimento

A partir do início do séc. XVI, os artistas europeus inspiram-se cada vez mais directamente do mundo natural, na tentativa de capturar em detalhe os segredos e mecanismos dos animais e plantas, que se tornam objecto de interesse. Simultaneamente, naturalistas e amadores coleccionavam e analizavam elementos do mundo físico, divulgando os novos conhecimentos da Natureza em gravuras e obras ilustradas. Nestes estudos, arte e observação congregam dois modos de conhecimento que convergiram de modo ímpar no Renascimento: o estético e o científico.

Réunion des Musées Nationaux (França)

O interesse actual por estas raras iniciativas está patente no desafio colocados pelo rudimentares meios técnicos disponíveis para realizar observações e registos, assim como a inacessibilidade dos fundos oceânicos. Também a particular fragilidade dos animais aquáticos que se decompõem rapidamente uma vez retirados do seu meio natural, desaparecendo as cores originais, supôs um grande obstáculo à análise e correcta ilustração dos espécimens.



Pioneiros do Estudo da Fauna Aquática


O médico francês Pierre Bélon (1517-1564) adquiriu renome quando em 1551 publicou L'Histoire Naturelle des Estranges Poissons Marins avec la vraie peincture et description du Daulphin et de plusieurs autres de son espèce. Parte do sucesso deveu-se à mescla de observações científicas com elementos fantásticos de criaturas lendárias. O facto de ser uma das primeiras obras de cariz científico escrita em francês também explica a sua ampla divulgação.

Bélon, considerado o pai da anatomia comparativa e da embriologia, compôs diversas outras obras que se caracterizam pela atenção prestada ao pormenor e erudição, tais como De Arboribus Coniferis, Histoire de la Nature des Oiseaux, além de um relato das suas viagens ao Médio Oriente, sendo considerado como precursor dos estudos de anatomia comparada. Por ordem de Francisco I de França, empreendeu uma viagem científica no Mediterrâneo Oriental, recolhendo informações sobre animais exóticos, como a girafa, o crocodilo e o camaleão. Quanto à sua História Natural, o autor revela-nos o resultado das suas observações do golfinho, ocupando-se em pesquisas improvisadas durante as visitas ao mercado de peixe que frequentava, onde estudava os restos ósseos do animal, comparando-os com representações clássicas de golfinhos da Roma antiga. Curiosamente, Bélon relaciona o desconhecimento zoológico do golfinho com interdições alimentares tradicionais do Mediterrâneo, bem como ao carácter mitológico do animal.

Dois anos mais tarde, publicou outro importante compêndio, De Aquatilibus Libri Duo (1553), mais tarde traduzido como La Nature et Diversité des Poissons, avec leurs pourtraictz représentez au plus près du naturel (1555), uma das primeiras obras ilustradas de recolha pré-científica especificamente dedicada aos peixes e animais aquáticos.



A progressiva atenção dedicada à descrição da Natureza significou que as suas representações se foram aproximando gradualmente da realidade, como quando Guillaume Rondelet (1507-1566) publicou o tratado De Piscibus Marinum in quibus verae piscium effigies expressa (1554), no qual são descritas perto de 250 espécies de animais marinhos cujas características morfológicas são representadas em dezenas de gravuras.

Considerado o pai da Ictiotomia ou anatomia dos peixes, veio dar sentido ao termo "peixe". Antes do reconhecimento do seu trabalho, "peixe" era aplicável a qualquer animal aquático, vertebrado ou não. Rondelet distinguiu anatómicamente os sistemas orgânicos com tal minúcia, a ponto de distinguir claramente o grupo de peixes que respiram através das brânquias, dos mamíferos aquáticos, cuja mencionada função é exercida por órgãos mais complexos denominados pulmões.




Entre 1551 e 1558 o médico00000232.jpg suíço Konrad Gessner (1516-1565) publica a monumental Historia Animalium (dividida em 5 Livros, contendo 4.500 páginas abundantemente ilustradas, de grande impacto na Europa renascentista. Trata-se da mais importante compilação zoológica do Renascimento, na qual se sintetizou o conhecimento da época sobre o reino animal.

O quinto volume, "Liber Quartus, qui est de Piscium et Aquatilium animantium natura" (1558) contém descrições de peixes e outros animais aquáticos. Embora imbuído de uma concepção medieval tanto pela sua organização alfabética, como pela profusão de informativa não estritamente zoológica que recolhe (como os usos medicinais, as virtudes morais ou as referências literárias e históricas dos animais que regista), foi o ponto de partida imprescindível a todos os estudios zoológicos posteriores.

Gessner, típico homem multifacetado do Renascimento, auto-intitulava-se "Filósofo, Doutor, Gramático, Filólogo, Poeta e Estudante de Todas as Línguas", mas destacou-se como um dos maiores naturalistas de Quinhentos.








Outro dos pioneiros naturalistas foi Ippolito Salviani (1514-1572). Em Roma, zoom_squid.jpgonde praticava Medicina e se ocupava na investigação da vida marinha, o seu talento, formação e afeição pela História Natural mereceram-lhe a amizade do Cardeal Cervini, conseguindo ser nomeado médico do Papa Júlio III. O apoio financeiro do seu generoso mecenas possibilitou a recolha de elementos de França, Alemanha, Inglaterra e da Grécia, relativos às representações morfológicas dos peixes que se propôs descrever, assim como o estabelecimento de uma oficina tipográfica em sua casa para a impressão da sua obra monumental sobre os peixes do Mediterrrâneo, "Aquatilium Animalium Historiae Liber Primus", publicada entre 1554 e 1558.
Assim, as grandes obras de pesquisa baseadas na experiência e na observação surgem nesta época, como os estudos fundamentais Histoire Naturelle des Poissons do francês Guillaume Rondelet, do italiano Ippolito Salviani (primeiro estudo dos peixes ilustrado em gravuras especialmente preparadas) e do bolonhês Ulisse Aldrovandi (1522-1605), De Piscibus Libri V et De Cetis Libri Unus (1613), publicado pelos próprios alunos a partir dos seus manuscritos (parte de uma imensa obra de 12 volumes contendo mais de 5.000 ilustrações), e de John Johnston, Theatrum Universale Omnium Animalium Piscium, Avium, Quadrupedum, Exanguium, Aquaticorum, Insectorum, et Angium (publicado em 1650).

Os cadernos de aguarelas soberbas de Aldrovandi conservados na Biblioteca da Universidade de Bolonha estão disponíveis online.

Todos estes estudos zoológicos ilustrados abrangem a Arte e a Ciência no início da sua maturidade. Se, por um lado, o seu objectivo principal é científico, muitas delas incluem imagens novamente realizadas de extraordinário valor estético e artístico.



Georg Markgraf: um Humanista nos Trópicos

Já no século XVII outros exploradores depararam-se com novas espécies de peixes. O alemão Georg Markgraf, por exemplo, adicionou mais de uma centena ao conjunto já conhecido.


Maurício de Nassau embarcou com uma comitiva de pintores, artistas e cientistas 150 anos antes das expedições de Alexander von Humboldt pela América Latina. O resultado está contido neste "corpus" artístico e científico sem precedentes de quadros, gravuras e desenhos únicos, mapas e levantamentos da fauna e flora brasileiras ricamente ilustrados. Este material ajudou a formar a imagem do Novo Mundo na Europa, numa época em que só havia relatos mais ou menos fantasiosos sobre os nossos índios canibais.


Exemplares inéditos, como a piranha, o mucu (lampreia) e a aracatuaia (peixe-galo) resultam das observações de Willem Pies (1611-1678), médico e naturalista holandês, e Georg Markgraf (1610-1644), naturalista alemão, que acompanharam em 1638 o príncipe Maurício de Nassau-Siegen na sua viagem ao Brasil, onde tomou posse como governador das efémeras colónias holandesas no Nordeste recém-conquistado. Willem Pies foi médico do príncipe e percorreu o país durante 6 anos juntamente com Markgraf.



O resultado desta expedição patrocinada pela Companhia das Índia Ocidentais holandesa foi a extraordinária compilação intitulada Historiae Rerum Naturalium Brasiliae (publicada em Amsterdam, 1648), cuja tradução em português se encontra acessível onlin aqui (infelizmente, de fraca qualidade). Trata-se do primeiro estudo científico de História Natural do Brasil, e o mais importante livro de referência neste domínio até ao século XIX.

Pies redigiu a primeira parte com as suas observações médicas sobre a botânica e drogas naturais, enquanto que a parte de Markgraf é póstuma, contendo as suas notas sobre as plantas, peixes, aves, mamíferos, répteis e insectos locais, assim como a geografia e os habitantes. Este estudo tornou-se na mais importante obra de referência sobre este tema até ao séc. XIX.

segunda-feira, março 15, 2004

O que têm em comum um navio de guerra, uma carruagem do Metropolitano e um avião comercial?

Começemos pelo ex-porta-aviões norte-americano USS «Oriskany», popularmente conhecido como "Mighty O", um gigante de 30.800 toneladas e 275 metros de comprimento. Pois bem, ao abrigo do "Inactive Ships Program", sob a alçada do Naval Sea Systems Command (NAVSEA) e em conjunto com a MARAD (Maritime Administration) irá tornar-se em breve no maior recife artificial subaquático de origem militar. Uma atracção de peso, mas que conhece outras formas, como iremos ver mais à frente.

A construção do porta-aviões iniciou-se nos estaleiros navais de Nova Iorque ainda durante a II Guerra Mundial, mas foi lançado à água só em Outubro de 1945, já depois do final do conflito. No decorrer do seu distinto serviço, integrou as Sexta e Sétima Frota norte-americanas no Pacífico, operando durante as Guerras da Coreia e Vietname, servindo a US Navy até 1976, data da sua desmobilização. Vendido em 1997 para sucata, escapou ao desmantelamento por falhas contratuais e foi readquirido pela Marinha dos Estados Unidos dois anos depois.

Hoje em dia, após uma extensa limpeza e remoção de materiais poluentes, o "Mighty O" aguarda no Texas desde 1998 a sua derradeira morada, entre os Estados que o querem acolher nas suas águas: Florida, Mississippi, Texas ou os candidatos conjuntos da Georgia e Carolina do Sul.

Actualmente, ainda existem mais 24 navios da US Navy (desde cruzadores lança-mísseis a porta-aviões da classe "Forrestal" com 331 metros) que aguardam a sua vez para se tornarem residência submarina.
Notícia da "Cyber Diver News Network" e uma excelente selecção de fotos sobre a história do USS «Oriskany».

... também antigas carruagens do Metropolitano de Nova Iorque como esta são apenas o início de uma nova "colónia" de 50 carruagens mergulhadas no Shark River Reef frente ao Estado de New Jersey, cuja colocação é coordenada pelo Corpo de Engenharia do Exército dos Estados Unidos. A Autoridade de Transporte da Cidade de Nova Iorque pensa agora ser este o melhor destino para 1.300 carruagens desmobilizadas. Mais alguns detalhes nos comunicados do Departamento de Protecção Ambiental de New Jersey e da "Division of Fish and Wildlife" estadual.



Galeria de fotos subaquáticas das carruagens afundadas aqui.

...e aviões também!


Entretanto, já no próximo mês de Maio um Boeing 737-200 construído em 1966, desafectado e doado pela "Qwest Airparts" do Tennessee será submergido no Oceano Pacífico, uma milha ao largo da Ilha de Vancouver, no Estado da Columbia Britânica (Canadá), graças aos esforços da associação sem fins lucrativos "Artificial Reef Society of British Columbia", com o apoio das autoridades municipais, entidades de Turismo e numerosos centro de mergulho locais. A limpeza e preparação da fuselagem do avião deveu-se ao trabalho de inúmeros voluntários desejosos de participar na concretização do primeiro recife artificial em forma de... aeronave.

História completa no "Seatte Post Intelligencer", na "Cyber Diver News Network" e "DiverNet". Mais fotos da operação aqui.

Finalmente, mais próximo de nós, outro projecto envolvendo a fragata da Royal Navy HMS «Scylla» (activa entre 1968 e 1994), destinado a transformá-la num dos primeiros recife artificiais europeus a partir de um navio de guerra (juntamente com a fragata HMS «Sirius», afundada em 1998) ao largo da Cornualha será consumado este mês ou no próximo. A "Artificial Reef Consortium" é a responsável pelo evento, que poderá vir a ter seguidores proximamente. Já se aceitam inscrições para os primeiros mergulhos.

sexta-feira, março 05, 2004

Estranhas Formas de Vida

Arte e Ciência do Mundo Marinho (e não só)
Iniciamos este breve roteiro por uma exposição de Fotografia Científica "Images from Science", da Rochester Institute of Technology (Nova Iorque), "online" desde 2002. Esta instituição promotora de actividades fotográficas desde há mais de 100 anos, intervém mais recentemente na educação e pesquisa científica, reuniu aqui fotos realizadas no âmbito de estudos científicos nas áreas da Oceanografia, Geologia, Biologia, Engenharia, Medicina e Física, divulgando a abrangência da imagem de alta resolução no campo das Ciências.

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Seguimos para uma visita a exemplares marinhos de escala ínfima. O Instituto para a Promoção do "Menor que Um Milímetro" apresenta o Museu Micropolitan (leram bem) de formas artísticas microscópicas. Uma colecção excepcional de Microfotografias, a ver de perto.

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As duas curiosas gravuras seguintes representam, respectivamente, exemplares de "Zeus Spinosus" e de "Cyprinus Cylindricus".

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Formam parte das colecções conhecidas por "Museum Adolphi Friderici", reunidas pelos reis da Suécia Adolf Fredrik (1710-1771) e Lovisa Ulrika (1720-1782), e as publicações do seu ilustre súbdito Carl Linnaeus, autor da catalogação científica (realizada AUTAS001124072570.jpgentre 1754 e 1764). As colecções originais têm vindo a ser reconstituídas pelo Museu Nacional de História Natural, em Estocolmo.

Concluindo esta breve ronda pela vida marinha, temos um Dragão Marinho naturalmente disfarçado de alga ("Weedy Sea Dragon") pintado pelo inglês William Buelow Gould (1801-1853) que terminou os seus dias como recluso na remota ilha da Tasmânia (Sul da Austrália). O seu caderno de pintura sobre peixes conserva-se actualmente na Allport Library and Museum of Fine Arts no Estado australiano da Tasmânia e está disponível no respectivo "site" da Biblioteca Estatal da Tasmânia.

terça-feira, março 02, 2004

O Regresso dos Vikings

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De Inglaterra vem a notícia de um dos mais importantes achados arqueológicos sobre os Vikings em terras de Sua Magestade. Segundo os arqueólogos do Museu do Yorkshire, trata-se muito provavelmente de um local de enterramento num navio Viking, o primeiro a ser descoberto em Inglaterra.

Graças a entusiastas de fim-de-semana munidos de detectores de metal, um primeiro conjunto de 130 artefactos foi posto a descoberto: uma fivela de cinto, espadas, pregos de navio e uma colecção de lingotes e moedas de prata (entre as quais um exemplar árabe cunhado em Bagdad) datadas do final do séc. IX num campo cultivado do Yorkshire (Norte de Inglaterra), próximo da margem de um rio. Prepara-se agora a escavação do local que poderá revelar vestígios de um hipotético navio Viking.

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Achados Vikings em Yorkshire, Inglaterra
Este tipo de achados é contemporâneo da prática de inumação de líderes Vikings nos seus navios de guerra (os "drakkars"), junto com com os seus tesouros e possessões pessoais que lhes seriam de utilidade no Além. Esta valiosa colecção vai enriquecer as reservas do Museu local após estudo pelos técnicos do British Museum e os seus achadores devidamente compensados por terem respeitado o património e comunicado o achado às entidades competentes. De facto, vale a pena salientar que os achadores comunicaram a descoberta através do "Portable Antiquities Scheme", uma base de registo voluntário relativa a artefactos arqueológicos achados pelos cidadãos. Uma ferramenta eficaz na preservação do património, aberto à contribuição pelo público. A base de dados, que ultrapassa os 60.000 artefactos, está disponível online.

A importância destes vestígios prende-se com um período ainda pouco conhecido em que os Vikings se estabeleceram nas terras que assolaram previamente, após as primeiras vagas de assalto às costas inglesas.

Mais pormenores nas notícias do «Guardian» e aqui (ilustrada).

O local de enterramento em navio mais antigo na Inglaterra encontra-se em Sutton Hoo, datado do século VII. Descoberto em 1938, consiste no único túmulo real Anglo-Saxão conhecido até hoje, pois muitos outros foram alvo de vandalismo e saqueadores nos séculos que se seguiram. Do navio de 30 metros de comprimento já só restava o "negativo" das formas do casco impressas naturalmente na camada de terra que o suportou. O "site" oficial oferece alguma informação complementar.



Fantasmas dos Vikings na Ibéria

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Navio viking representado na tapeçaria de Bayeux, que representa a invasão normanda de Inglaterra por Guilherme o Conquistador, séc. XI (Normandia)
Na fachada atlântica da Península Ibérica, a passagem dos guerreiros-navegadores nórdicos deixou memória muito vaga, mas sabe-se, por exemplo, que no ano de 966 uma frota de 28 navios Vikings terá sido avistada, tendo sido enfrentada por uma esquadra de galés andaluzas ao largo da costa algarvia, ao largo da ribeira de Silves. De acordo com um testemunho, vários destes navios nórdicos terão sido afundados.

Já na década de 1970 foram encontrados entre Portimão e Silves, vestígios de uma embarcação de casco trincado que entretanto terá sido escondida por fortes assoreamentos e destruída por sucessivas dragagens nas 2 décadas seguintes devidas ao desrespeito patrimonial demonstrado pelas autoridades portuárias da época.

Os hipotéticos vestígios arqueológicos de um navio viking fizeram assim uma reaparição efémera, proximo da área estudada recentemente no âmbito do Projecto Arqueológico Subaquático da foz do rio Arade (Portimão). Os estudos e relatórios preliminares estão disponíveis aqui e aqui. Embora os resultados preliminares das análises de datação e das campanhas arqueológicas iniciadas em 2002 por uma equipa internacional que reuniu arqueólogos e mergulhadores de 4 instituições: o CNANS, o Grupo de Estudos Oceânicos (GEO), a Universidade de São Paulo (Brasil) e o Institute of Nautical Archaeology (da Universidade de Texas A&M) tenham para já afastado qualquer ligação entre navios vikings e os vestígios conhecidos, valerá a pena aguardar pelo prosseguimento dos trabalhos.
Parte deste trabalho esteve recentemente em exposição no Museu Nacional de Arqueologia (como já pudemos noticiar).

Mais detalhes históricos acerca da passagem pelo Condado Portucalense dos temíveis homens do Norte aqui.



Navio de Gokstad, construído no séc. IX e descoberto em 1880 (Oslo, Noruega)

Navios como estes, movidos a vela ou a remos, tornaram-se nos meios ideais para os ataques dos temidos guerreiros do Norte. A sua configuração longilínea e a qualidade da construção robusta mas elegante permitia uma navegação rápida, de manobra ágil e furtiva, beneficiando de um calado tão reduzido que facilitava o seu encalhe nos frequentes desembarques em praias, assim como as incursões rios acima. A mestria da navegação nórdica levou os Vikings a expandirem-se para bem longe, rodeando as costas europeias até ao Mediterrâneo e para Oeste até ao continente norte-americano (cerca de 500 anos antes de Colombo).



No Tempo dos Guerreiros-Navegadores

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Hoje em dia, algumas das célebres figuras de proa que aterrorizaram as povoações costeiras da Europa durante a Idade Média encontram-se exposição em vários museus, como no Museu do Navio Viking em Roskilde (Dinamarca), junto ao local onde foram descobertos no final do séc. XIX 5 embarcações afundadas intencionalmente no séc. XI para bloquear o acesso ao porto. A partir dos dados obtidos nestes naufrágios, foram construídas 3 réplicas, cuja navegação se mostrou bem sucedida: entre 1984 e 1986 a réplica de um dos navios de carga descobertos ("Wreck 1") circumnavegou os mares do Mundo. Desde então, muitas outras réplicas têm sido construídas para testar métodos de construção e "performances" dos navios Vikings.

Também o "Viking Ship Museum" de Oslo, na Noruega, conserva os elegantes cascos dos navios naufragados de Oseberg, Gokstad e Tune, entre outros.

Actualmente, decorre uma exposição sobre a Era dos Vikings no "Smithsonian National Museum of Natural History" (Washington D.C.), acessível numa soberba visita interactiva em "Vikings: The North Atlantic Saga".

segunda-feira, março 01, 2004

Livingstone e a Mensagem na Garrafa

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Segundo "The Guardian", um dos hábitos do eminente explorador e médico missionário escocês David Livingstone (1813-1873) (além da sua arrogância para com os rivais exploradores e deixar o seu nome gravado nas árvores por onde passava) era o envio de mensagens em garrafas seladas. Livingstone, o primeiro europeu a empreender a travessia do grande Lago Tanganyika, descobriu para o mundo ocidental as monumentais cataratas de Victoria (Victoria Falls, entre a Zâmbia e o Zimbabwe) e embrenhou-se pela África negra profunda, na busca da lendária nascente do Nilo, mas morreu antes de atingir o seu objectivo.

História de uma Garrafa e seus Donos
A mensagem foi deixada na garrafa por Livingstone na foz do rio Zambeze em Maio de 1859, após uma infrutífera semana de espera por navios ingleses para o recolher. Nesta carta, o explorador informa que vários membros da expedição sofrem de graves febres, pedindo o envio urgente de provisões e noticiando a subida do rio Zambesi e descoberta do Lago Shirwa (Moçambique).

A garrafa acabaria por ser encontrada por um navio-patrulha da "Royal Navy" algum tempo depois e foi vendida a Sir James Donnet, um cirurgião de bordo, tendo sido vendida posteriomente por um descendente seu num leilão em Nova Iorque em 1957. Foi adquirida por um coleccionador inglês Quentin Keynes (curiosamente, um bisneto de Charles Darwin), que também visitara o Zambeze, onde encontrou as iniciais de Livingstone gravadas numa árvore.

Relíquia Valiosa
No próximo mês de Abril, a "Christie's" de Londres irá leiloar de novo esta relíquia, cuja expectativa de venda ronda as 20.000 Libras (30.000 Euros).

A mensagem será vendida juntamente com outro documento assinado por Livingstone e Sir Henry Morton Stanley, o jornalista americano enviado a África para descobrir o explorador, tendo sido autor da célebre frase proferida quando do encontro de ambos no meio da selva africana: "Mr Livingstone, I presume?"...