quarta-feira, agosto 29, 2012

Os Gloriosos Inventores dos Sinos de Mergulho


 

Mergulhos na História


Esfinge nas ruínas de Alexandria submersa.
Franck Goddio / Hilti Foundation
 Adormecidos sob os mares, naufrágios, tesouros e antiguidades sempre despertaram vivo e persistente interesse. Desde cedo os navios naufragados passaram a ser alvo de ensaios tecnológicos para alcançá-los e resgatá-los. Um desafio assumido num meio físico diferente, desde as primeiras tentativas de navegação ao trabalho regular e permanência prolongada debaixo de água. Mas, como sempre acontece com a inteligência humana, tudo começou com a curiosidade.
 
Dos objectos que a transitoriedade do mundo e o tempo que passa tornam inexoravelmente obsoletos, avultam nos armazéns da memória marítima os sinos de mergulho. Dada a novidade - e a futura universalidade -, nada mais apropriado do que o prestigiad suao apadrinhamento por Alexandre da Macedónia, o "Grande" para apresentação deste primeiro engenho subaquático.
 
Jans Enikel Jansen, "Weltchronik", c. 1420. Biblioteca da Universidade de Heidelberg

O primeiro mergulho técnico na História encontra o seu lugar destacado em episódios de particular curiosidade na fabulosa vida do rei Alexandre. Ilustre discípulo de Aristóteles, foi este mestre quem, na sua obra "Problemata" (séc. IV a.C.), relatou a primeira utilização daquilo que viria a ser conhecido como sino de mergulho: um contentor invertido cuja base aberta providencia um meio de respiração restrito, mas operacional.  
 
Reza o Romance de Alexandre o Grande que, tendo-sedeparado um dia com um caranguejo de consideráveis proporções em cuja carapaça se revelaram sete pérolas que jamais homem algum admirara, o monarca grego concluiu que esta rara criatura deveria ser originária das inacessíveis profundezas marítimas. Fascinado, decidiu ultrapassar esse obstáculo dos comuns mortais e concebeu uma jaula metálica, dentro da qual colocou uma enorme jarra de vidro com cerca de 2 metros de diâmetro, com um orifício na base da dimensão de uma mão para poder explorar o leito marinho.
 
Romance de Alexandre, versão francesa, iluminara de Jehan de Grise, 1338-1344. Bodleian Library, Oxford

Shrewsbury Talbot Book of Romances, versão francesa do Romance de Alexandre, Rouen, c.1445.
The British Library.
 
O episódio subaquático de Alexandre, o Grande, num contentor estanque equipado com uma superfície de vidro para observação dos fundos e fauna marinhos, conquistou a imaginação do mundo medieval, alimentando o desejo de explorar o mundo submerso.

Muitos relatos da Idade Média popularizaram o acontecimento em diversas versões da vida de Alexandre.  Encerrado na sua cápsula rudimentar, contemplou muitas espécies de peixes, incluindo alguns muito semelhantes a homens e mulheres, incluindo um enorme monstro aquático que ousou arremessar  a engenhoca do soberano grego até arrojá-la na costa, deixando o magno conquistador caído na areia. De utilidade comprovada, apesar de algumas nódoas negras e do grande susto, um sino, ou esfera de mergulho, foi de novo utilizado por Alexandre no cerco da cidade fenícia de Tiro, em 332 a.C., que envolveu amplas operações anfíbias bem sucedidas.
A importância da lenda prende-se também com o precoce ponto de partida para uma longa e rica genealogia de invenção e tecnologia subaquática. Embora o princípio físico da hidroestática que explica esta acção só tenha sido descoberto por Arquimedes no século seguinte, em 250 a.C., a curiosidade em torno desta experiência formou a base para futuras experiências. Mas ainda demorariam mais de mil anos até serem dados os passos seguintes.
 

Génios, Visionários e Inventores

 
Proposta fantasiosas de escafandro rudimentar para afundar navios inimigos e construção de estruturas em meio subaquático. À esquerda, desenho anónimo, séc. XVI [daqui] e à direita um "pappafico", ou escafandro de cabedal, do tratadista militar Giovanni Battista della Valle, Vallo: Libro continente appertinente à Capitanii, retenere & fortificare una Città con bastioni, con novi artificii de fuoco aggionti (1521) [edição de 1529 online da ETH-Bibliothek, Eidgenössische Technische Hochschule (Swiss Federal Institute of Technology), Zürich]).

No Renascimento, a curiosidade pelos vestígios históricos da Antiguidade Clássica e o fascínio técnico da experimentação  aliaram-se num ensaio precoce e particularmente inspirador.  O interesse suscitado pelas descobertas de fragmentos de madeira e artefactos de bronze por pescadores num pequeno lago vulcânico a Sul de Roma sugeria existirem embarcações antigas afundadas e levou em 1446 o reputado arquitecto e filósofo Leon Battista Alberti, patrocinado pelo Cardeal Colonna, a pesquisar os misteriosos achados submersos.
 
Porém, a tentativa apenas resultou parcialmente, apesar da jangada especialmente concebida para o efeito. Os mergulhadores em apneia genoveses não conseguiram ultrapassar a falta de visibilidade e a falta de equipamento ditou o insucesso prematuro e dispendioso.

Mas o mergulho no lago Nemi motivou um passo determinante na exploração subaquática.  
 
Entre 1531 e 1535, Guglielmo de Lorena projectou e construiu um "sino" individual transportado fisicamente pelo mergulhador. Este foi considerado o primeiro sino de mergulho moderno (reconstuído aqui). Em 1535, o destemido capitão e engenheiro bolonhês Francesco de Marchi, experiente militar, de sólida cultura clássica e científica, autor de Della Architettura Militare Libri Quattro. Nelli quali tre primi si descrivono li veri modi del fortificare, che si usa à tempi moderni (Brescia, 1599-1600), recuperou a ideia e decidiu mergulhar ele próprio. 

Lago Nemi, onde, em 1446 decorreu o primeiro mergulho "arqueológico" - é visível a jangada especialmente concebida pelo arquitecto Alberti - e em 1535 foi utilizado o primeiro sino de mergulho moderno. Athanasius Kircher, Latium, id est, nova & Paralella Latii tum Veteris tum Novi Descriptio (1671). Herzog August Bibliothek, Wolfenbüttel.

Eis o que as águas escuras do lago italiano escondiam havia mais de mil anos:


Duas galés imperiais gigantes de recreio, únicas na sua tipologia, medindo cerca de 70 metros de comprimento, provavelmente concebidas para entretenimento do célebre imperador Calígula.

Nesta experiência, Marchi serviu-se de um modelo reduzido de sino de mergulho construído em madeira e reforçado por aros de metal concebido 4 anos antes por Guglielmo di Lorena, abarcando apenas a cabeça e o tronco (deixando livres as mãos e parte dos braços) equipado com um “cristal” transparente para observação e, provavelmente, um tubo de respiração.  
 
Reconstituição de uma das duas galés imperiais afundada no lago Nemi,
alvo dos mergulhos pioneiros dos séculso XV e XVI. Imago Romae
O sino permitiu retirar uma secção do tabuado, posteriormente descrito quanto ao método de montagem, procedendo-se ainda à medição do perímetro do casco, apesar de Marchi ter aparentemente sofrido um inesperado traumatismo fisiológico - embora a descrição das lesões sofridas corresponda aos efeitos do aumento de pressão nos tímpanos ao longo da descida subaquática, a verdade é que a experiência a que Marchi esteve submetido não deveria ter provocado tal ocorrência, pois isso implicaria que tivesse mergulhado a partir da superfície.
Não obstante o resultado pioneiro na recolha e análise de vestígios antigos em meio subaquático, uma vez saciada a curiosidade e sem qualquer proveito financeiro à vista, também esta iniciativa não teve seguimento. Mas o interesse pelos “engenhos” utilizados transformou-se em fonte de inspiração para novas propostas de equipamento de mergulho, pois ficara provado ser possível explorar o mundo subaquático.
Após muitos séculos de olvido, drenagens intensivas entre 1929-30 colocaram a descoberto pela primeira vez desde o seu afundamento ambas as galés imperiais. Do seu interior recuperaram-se ricos elementos decorativos como mármores coloridos, bronzes e fragmentos de pavimentos de mosaico. Infelizmente, ambas as embarcações foram destruídas em 1944 durante a II Guerra Mundial.

Poucos anos decorreram e a novidade chegou à Península Ibérica. Foi em 1538, segundo a descrição do religioso e matemático francês Jean Taisnier, que compara a forma do sino a um “cacobus aquaticus”, isto é, um "caldeirão aquático" apresentado com pompa em Toledo. Devidamente lastrado com pesos de chumbo, mergulho lentamente nas águas do Tejo na presença do imperador Carlos V e de muitos milhares de curiosos. No seu interior, dois mergulhadores gregos sobreviveram à experiência, demonstrando as virtudes do invento, alegadamente sem se molharem nem ter sido apagada uma vela acesa que os acompanhou  ao longo da imersão. Permanece por explicar a falta de notícias portuguesas e espanholas sobre este importante evento tecnológico.
 
A eficiência demonstrada deu início a um lento, mas generalizado, interesse nestes engenhos da curiosidade humana. Estava aberta a porta à exploração do imenso mundo submerso.

O Resgate de Navios


O tratado militar do capitão de artilharia espanhol Diego Ufano, exemplo influente da importância que o resgate subaquática assumiu na época moderna. Note-se, porém, que o "capuz" de mergullho é totalmente impraticável.
Tratado dela artilleria y uso della (1613) [Biblioteca da Universidade Complutense, Madrid]  

Resgate de carga submersa.
A tecnologia do Renascimento ao serviço das recuperações submersas na obra do "Mestre dos Engenhos do Rei" Carlos IX de França, Jacques Besson, Theatrum Instrumentorum et Machinarum (1582).
Biblioteca da Universidade de Basileia.
Em baixo, recuperação de navio afundado por meio de pontões (edição original de 1578).  
Dibner Library of the History of Science and Technology (Smithsonian)



Um nome que ganhou vulto incontornável e contribuiu para o notável pelos seus conhecimentos de Matemática e de Física foi o italiano Niccolò Tartaglia, referência obrigatória na materia. Não houve praticamente tratado militar ou técnico da segunda metade de Quinhentos até ao início de Seiscentos que não referisse os seus estudos, sobretudo devido ao seu estudo pioneiro da balística, mas também o capítulo específico da ciência na recuperação de navios afundados.  

Tartaglia baseou as suas propostas em princípios físicos e matemáticos (foi um dos primeiros tradutores de Euclides e de Arquimedes) ainda sem aplicação prática. A importância das suas ideias, acompanhando um generalizado movimento de retoma do passado potenciado pelo período não só das navegações das Descobertas, como ainda pela redescoberta do passado arqueológico, explica o lugar destacado que ocupou em tratados e manuais, apresentando inovações teóricas e práticas imprescindíveis aos inventores e engenheiros militares que cuidavam em explorar esse novo mundo submerso.




O interesse dedicado por Tartaglia aos resgates subaquáticos ficou vertido na obra fundamental Regola generale da sulevare con ragione e misura non solamente ogniaffondata naue: ma una torre solida di metallo trouata da Nicolo Tartaglia,delle discipline mathematice amatore intitolata la Trauagliata inuentione. Insieme con un artificioso modo di poter andare, & stare per longo temposotto acqua, a ricercare le materie affondate, & in loco profundo (1551).

No capítulo "Travagliata Inventione", são descritas versões particularmente avançadas do sino de mergulho, com manobrabilidade superior (molinete accionado pelo tripulante pelo mergulhador e visibilidade total, embora num habitáculo notoriamente reduzido, concebido em cristal de Murano. Outra versão de grande originalidade mostra um modelo ampliado da esfera protegida por uma armação simples de madeira, disponibilizando uma cadeira para o "tripulante" e equilibrada por lastro de chumbo.
 

Duas versões de sino de mergulho inovador, segundo Tartaglia, Regola Generale (1551).
Max Planck Institute for the History of Science, Berlim
                    “Instrumentos nos quais podem estar homens sob a água”. Buonaiuto Lorini, Le Fortificationi
Ainda no século XVI, outro técnico italiano apresentou nova versão do sino de mergulho sob a forma de uma grande caixa metálica lastrada que dispunha de uma vigia para observação. O seu autor, o arquitecto militar florentino Buonaiuto Lorini, considerou-a útil tanto para obras submersas, como para o resgate de artilharia afundada e recolha de coral. A ilustração não surgiu na edição original do seu grande tratado de arquitectura militar em 1596, mas na edição seguinte de 1609, data em que adicionou o Livro Sexto - dedicado ao esclarecido Cosimo de Medici, Grão-Duque da Toscana -, ilustrado com meia centena de gravuras descritivas de máquinas e mecanismos para as mais diversas utilizações. Lorini serviu os reis de França e Espanha e os Doges de Veneza, com largos anos de serviço na Flandres e nas guerras turcas.
 
Deste modo, o sino ganhou definiivamente a atenção, e a projecção, da elite técnica europeia no final do Renascimento.  


Em Busca dos Naufrágios: a caça aos tesouros

 
 A expansão global das navegações e as partidas de frotas europeias de muitos milhares de navios operando em rotas cada vez mais longas implicou o aumento das perdas de navios por naufrágio e encalhe. Ao mesmo tempo que os acidentes marítimos se sucediam, era necessário encontrar encontrar soluções para os resgates subaquáticos.

Face à escala do problema, esta actividade não demorou a transformar-se em negócio lucrativo, aliando as necessidades das potências marítimas ao empreendedorismo activo no "moderno" mundo do Renascimento.
 
Evidentemente, muitas décadas se passaram até as técnicas e as capacidades construtivas se aperfeiçoarem. Ainda assim, as limitações materiais próprias da época condicionaram essa evolução prática e muitas propostas não passaram do papel, enquanto outras falharam redondamente. A mais espectacular de todas, tanto na escala do evento como no fracasso, ocorreu na lagoa de Veneza.

A "mãe" de todas as experiências de resgate subaquática: o levantamento falhado do galeão da lagoa de Veneza, descrito em pormenor na obra rara e anónima, Descrittione dell’artifitiosa machina fatta per cavar’il galeone (1560). Collection of Printing and Graphic Arts, Houghton Library (Universidade de Harvard)
 
Baseando-se nas ideias de Tartaglia, o engenheiro militar Bartolomeo Campi dirigiu cerca de 300 homens em 1560, na construção de uma uma gigantesca estrutura anfíbia, provavelmente o primeiro pontão  em madeira com várias dezenas de metros de comprimento e de altura. O objectivo:  recuperar um galeão naufragado. O problema: a estanqueidade dos flutuadores que suportavam toda a estrutura. Resultado: uma vez cheios de água os flutuadores na aproximação ao galeão afundado, não mais conseguiu ascender à superfície. Conformado com o insucesso, o autor reconheceu que a sua tentativa se assemelhara a “tentar secar o mar”.

A questão perdurava: como recuperar navios e objectos afundados de modo prático... e eficaz?




Em Espanha, o secretário do Conselho Real das Índias, Pedro de Ledesma, descreveu e ilustrou no seu “Pesca de perlas y busca de galeones” (1623)  - provavelmente o primeiro tratado dedicado integralmente ao resgate de navios afundados - a técnica para que “pessoas baixem ao fundo do mar em local onde haja dezasseir até vinte e cinco braças de agua e que esteja[m] três e quatro horas”. Seguem-se diversas representações iconográficas de técnicas de busca e resgate de navios afundados nas Caraíbas. Algumas considerações são apresentadas para modernização das "pescarias" de pérolas nessa rica região produtora.


Cristóbal Maldonado,"ingenio para pescar perlas" para dois mergulhadores (1577).
Archivo General de Simancas (Valladolid)

Alguns navios tornaram-se quase míticos devido à riqueza das suas cargas. Sem dúvida, os mais conhecidos de entre estes são os galeões espanhóis carregados com ouro e prata das Américas, popularizados na literatura e na cinematografia no séc. XX. Foi nas rotas centenárias da Carreira das Índias espanholas que o naufrágio de frotas inteiras com grandes carregamentos de ouro e prata ocorridos nos séculos XVII e XVIII nas Bahamas, nas Caraíbas e até na baía de Vigo (1702), deixou marcas duradouras na imaginação e na curiosidade de muitos empreendedores privados, que ainda hoje subsistem.

 
 

Eventualmente, uma ou outra expedição acabava por encontrar aquilo que todos procuravam.

A longa lista de ricos naufrágios espanhóis atraíu as atenções de muitos aventureiros. Entre 1622 e 1626, mergulhadores de pérolas da ilha Margarita, servidos por um sino de mergulho em cobre, formaram a força de trabalho no salvamento empreendido nos recifes das Bahamas, onde se desfez o galeão espanhol Nuestra Señora de Atocha com uma riquíssima carga em ouro e prata (recuperada parcialmente no séc. XX por caçadores de tesouros envoltos em polémica e um processo legal de grande repercussão).


Medalha de comemoração em prata do primeiro "pescador de naufrágios" bem sucedido, William Phips, cunhada em 1687. a legenda procede de Ovídio (Metamorfoses) e lê: "deixai sempre teu gancho pendurado". Em primeiro plano, o batel de apoio aos mergulhadores ocupa-se a içar destroços do galeão Nuestra Señora de la Concepcion.

Em 1687, após anos de buscas, o capitão William Phips conseguiu localizar nos baixos das  Bahamas (posteriormente baptizados de Banco da Prata) o naufrágio do galeão Nuestra Señora de la Concepción, afundado em 1641 por um violento temporal quarenta e seis anos antes com uma carga preciosa, recolhida praticamente na sua totalidade. Nascido em 1650 no Maine (América do Norte), esse oficial filho de um emigrante inglês, iniciou a sua carreira como carpinteiro naval na cidade de Boston. Além de parte da enorme fortuna recolhida (cerca de 200.000 libras), Phips foi armado cavaleiro pelo rei de Inglaterra e nomeado governador da colónia de Massachussets, concluindo com distinção uma das mais famosas campanhas de recuperação da época Moderna cujo desfecho bem sucedido perpetuou o mito da “caça ao tesouro” dos galeões espanhóis afundados.

Mais a Norte, a "febre" dos sinos propagou-se vigorosamente na primeira metade do século XVII. À medida que as potências marítimas Protestantes desenvolveram em força o seu poder naval, muitos técnicos aproveitaram este novo campo de oportunidades.
 
 
Sinos individuais semelhantes do alemão Kessler (1617) e do holandês Leeghwater (c. 1620) 
 
Em 1605 foi patenteado nas Províncias Unidas um sino portátil individual, apoiado no próprio mergulhador, que dispunha de pequenas janelas, pelo engenheiro hidráulico holandês Jan Adriaanszoon Leeghwater, construtor do primeiro sino de mergulho holandês,  para utilização na reparação de pontes e diques e eclusas, resgate de navios afundados, recolha de cargas e objectos valiosos submersos, mas também para transportar cartas e mensagens secretas, após experiências bem sucedidas num canal perto de Haia - a que assistiu o Príncipe Maurício de Nassau - e em Amesterdão. Durante a submersão de 45 minutos, terá inclusivamente tocado instrumentos de música, cantado e escrito para demonstrar a total operacionalidade do ambiente restrito. No entanto, desconhece-se qualquer actividade prática envolvendo a sua utilização posterior.

Esta versão fez escola. Na década seguinte, em 1617, o pintor e inventor alemão Franz Kessler, apresentou o mesmo modelo baptizado de "arnês subaquático", com garantias de não representarem qualquer risco "de vida ou membros", garantindo uma imersão perfeita sem recurso a "feitiçaria e magia negra", mas apenas para entreter os amantes dos segredos do mundo natural.

Ambos serviram de óbvia inspiração à  “armadura aquática” de Gaspar Schott, ilustrada na Technica curiosa, sive Mirabilia Artis (1664) [p. 395]. Só nenhum deles explicou como evitar tropeções e quedas do sino no leito dos rios ou no mar... 

Na mesma época, outros levaram os sinos ao limite das capacidades, mergulhando em águas ainda mais frias. Foi com recurso a pequenos sinos individuais que, entre 1664 e 1665,  o oficial sueco Hans Albrecht von Treileben e o alemão Andreas Peckell lideraram com notável sucesso as recuperações de meia centena de peças de artilharia do navio de guerra da coroa sueca Vasa (cujo casco foi resgatado em 1961 para um museu bem conhecido), no porto de Estocolmo a 30 metros de profundidade. Quarenta anos depois, outros 60 canhões foram recuperados nos destroços do Kronan no Mar Báltico pelo comandante Paul Rumpf e o almirante Hans Wachtmeister. O sino conheceu aqui o seu período de ouro em usos comerciais, por serviços contratados. 
 
Réplica do sino de mergulho utilizado no séc. XVII para resgate da artilharia do navio de guerra Vasa, afundado no porto de Estocolmo. Mais abaixo, um dos canhões recuperados entre 1663 e 1664 e vistas da popa e proa do navio resgatado em 1961.
Vasa Museet (Estocolmo)
 
 
 

 
Reconstituição de sino de mergulho utilizado no resgate da artilharia do navio Kronan na década de 1680.
Kalmar Läns Museum (Suécia)

De facto, os sinos foram os “engenhos” de mergulho mais comuns e eficazes da época moderna. Uma simples estrutura em forma de campânula invertida, fabricada em cobre, em madeira ou bronze. Muitos destes sinos dispunham de bancos montados no seu interior, de maneira a acomodar os mergulhadores. 
As manobras de posicionamento eram conduzidas a partir da superfície: suspenso por um cabo a partir do navio de apoio e deslocado com ajuda de um cabrestante e um braço em jeito de grua, ao submergir-se o sino na água ficava retida uma determinada quantidade de ar - que também impedia a água de entrar,. À medida que a profundidade aumentava, o ar  retido no interior do sino era comprimido pela pressão da água pelo que, quanto mais fundo se encontrasse, menos ar estaria disponível. O ar disponível não proporcionava mais que uns escassos vinte minutos aos mergulhadores até que as trocas gasosas o tornassem o irrespirável. Outro factor limitativo era a sua estabilidade debaixo de água. Os sinos apenas podiam operar em águas relativamente calmas, com correntes fracas, pois de outro modo poderiam balançar demasiado ou ser arrastados, impedindo o trabalho dos mergulhadores.



Um dos mais importante sdesenvolvimentos do sino ocorreu no final do séc. XVII. O astrónomo e físico inglês Edmund Halley (mais conhecido pelo cometa que identificou e baptizou) desenvolveu um sistema rudimentar de renovação de ar através de tubos em cabedal impermeabilizado ligados a barris descidos da superfície. Outro "extra" importante consistiu na adaptação de um pequeno sino individual, ou elmo ("cap of maintenance") que permitia a deslocação de um mergulhador nas imediações do sino-mãe.
Após as experiências bem sucedidas em que participou desde 1691, conseguindo imersões superiores a uma hora, Halley publicou em 1716 os resultados  sobre novas maneiras de trabalhar confortavelmente debaixo de água, com o título sugestivo “The art of living under water”. 

O sucesso do sino de Halley levou a que lhe atribuíssem, erroneamente, a invenção do próprio sino.
Não obstante, foi sobre este modelo sofisticado que os engenheiros e inventores seguintes se atarefaram a introduzir melhoramentos pontuais, como o sueco Marten Triewald (1741) e o franco-inglês Jean Théophile Desaguliers (1744), cuja obra reflecte a sistematização crescente introduzida com a criação das primeiras academias e sociedades científicas. Ambos desenvolveram modelos ligeiramente melhorados do sino de Halley.

Modelo do sino de Marten Triewald, c. 1720. Zeeuws Maritiem Muzeeum, Vlissingen 
Só com a Revolução Industrial se introduziu o derradeiro e decisivo desenvolvimento: em 1788, o engenheiro inglês John Smeaton testou o primeiro sino de mergulho alimentado a ar comprimido.
 
Na sua simplicidade e robustez, os sinos de mergulho continuaram ao serviço até à época contemporânea, com diversas modificações mas mantendo o mesmo princípio de utilização. 


William & Robert Chambers, Encyclopaedia: A Dictionary of Universal Knowledge for the People (1881).
Florida Center for Instructional Technology, College of Education (Universidade da Florida do Sul)
 
Sino do início do século XX. Encyclopædia Britannica, 1911. (Project Gutenberg Encyclopaedia)
 
Uma "máquina" de sucesso com séculos de história, que acompanhou discreta mas laboriosamente as nevagções e naufrágios, contra correntes, marés e monstros marinhos, hoje na penumbra do esquecimento.

Ilustração satírica de James Gillray, "Going down in a Diving Machine", 1801. The British Museum

 
Para ler mais:


- Para a descrição dos episódios subaquáticos protagonizados por Alberti e Marchi, veja-se um bom resumo em L. Th. LEHMANN, “Underwater archaeology in 15th- and 16th-century Italy”, in International Journal of Nautical Archaeology, Vol. 20, n.º 1 (1991), pp. 9-11 e Ennio CONCINA, Navis: l’Umanesimo sul’Mare (1470-1740) (1990), pp. 3-5. [e ainda outra página acerca da história, fotos e reconstituições das galés gigantes afundadas no lago Nemi]

- Sobre a ciência e tecnologia aplicadas na maior tentativa de salvamento subaquático realizada na lagoa de Veneza: Alex KELLER, "Archimedean Hydrostatic Theorems and Salvage Operations in 16th-Century Venice", in Technology & Culture, Vol. 12, n. 4 (1971), pp. 602-617
 
 
John E. RATCLIFFE, “Bells, Barrels and Bullion: Diving and Salvage in the Atlantic World, 1500 to 1800”, in Nautical Research Journal, Vol. 51, No. 1 (Spring 2011)
 

Vale a pena clicar:

Thijs MAARLVELD, History of Diving (2008) [rigoroso e imprescindível]

James DELBOURGO, "Divers Things: Collecting the World Under Water", in History of Science, 49 (2011) [perspectiva original acerca do coleccionismo e da História Natural, com muitos detalhes complementares acerca da utilizãção dos sinos de mergulho no séc. XVII]
 
History of Diving Museum (Florida Keyes) [útil e bem apresentado]

 

terça-feira, agosto 14, 2012

O Fado das Sereias

Ilustração de Christian Birmingham, The Litle Mermaid (edição inglesa do conto de Andersen, 2009)


“Muito longe da terra, onde o mar é muito azul, vivia o povo do mar. O rei desse povo tinha seis filhas, todas muito bonitas, e donas das vozes mais belas de todo o mar.
A filha mais nova era especial, com sua pele fina e delicada como uma pétala de rosa e os olhos azuis como o mar. Como as irmãs, não tinha pés mas sim uma cauda de peixe. Ela era uma sereia”.

Assim se inicia, na atmosfera melancólica do Romantismo, um dos primeiros contos de Hans Christian Andersen (1836), apropriadamente intitulado A Pequena Sereia (ou, na nossa típica diminutivo-mania, Sereiazinha). Arquétipo bondoso das antigas beldades mitológicas híbridas, meio-mulher, meio-peixe, de voz encantadora.

Estudo em aguarela para ilustração dos Contos de Andersen. Walter Crane, entre 1870 e 1880 (Victoria & Albert Museum, Londres)

 As Perigosas Mulheres Voadoras

A bem da verdade, as primeiras sereias - sirenas -, popularizadas na Grécia Antiga, não eram particularmente atraentes. Deviam mesmo ser evitadas. 

Eternizadas por Homero (o grande educador da Grécia, enunciou Platão) e Virgílio, os seus leitores ficaram a saber que estas invulgares criaturas habitavam um punhado de idílicas ilhas mediterrânicas, próximas do Estreito de Messina entre a Sicília e a Península Itálica.





A estância de Positano defronte dos lendários ilhéus de Sirenuse, derradeira morada das sereias, que ainda no ano passado estiveram à venda por 195 milhões de euros (3 villas com 19 quartos, duas piscinas privadas e um heliporto à disposição de um qualquer Ronaldo)
Porém, estas ensolaradas ilhotas paradisíacas beijadas pelo mar cálido e abençoadas pelo fértil solo vulcânico guardavam histórias inquietantes.
As maléficas habitantes notabilizavam-se por irresistíveis dotes musicais que atormentavam os navegadores desprevenidos. 

Outro pormenor sobressaía dessas ilhas: estavam juncadas de ossadas humanas, restos das vítimas arrastadas pelas vozes sedutoras das sereias que os devoraram. Um perigo difícil de evitar, pois quem pode escapar àquilo que deseja?


A morada das sereias, tornada em formidável obstáculo marítimo, deixou o seu legado até hoje no diminuto arquipélago que ostenta a sua origem mitológica: os ilhéus Sirenusas (ou Galli) ao largo do Sul de Itália, de onde foram desalojadas pelas hordas de turistas anualmente despejadas na vizinha costa de Amalfi, Positano e Capri.
 

Sereia e leões no Parque Sacro Bosco ou Bosco dei Mostri em Bomarzo, final do séc. XVI (Viterbo, Itália)
A paternidade das sereias sempre foi problemática e diversamente atribuída. Uns queriam que fosse Forcis, divindade marinha pouco simpática com os navegadores - representava os perigos das profundezas marítimas -, ou, na versão mais bem sucedida, à união do deus-rio Aqueloo e da ninfa Calíope. Outros ainda afirmavam terem as temíveis sereias brotado do próprio sangue derramado por Aqueloo após a sua derrota às mãos de Hércules. A genealogia não ajuda, pela falta de clareza dos seus progenitores.





Cílice em cerâmica do séc. VI a.C. (Walters Art Museum, Baltimore)

Quanto ao pormenor genético que originalmente as distinguia, as asas - ou o corpo - de ave, os autores mais antigos também não concordam.

Segundo Ovídio (Metamorfoses), as sereias teriam ganho asas em resposta à súplica aos deuses para procurarem a bela Perséfone (romana Prosérpina), que acompanhavam quando esta foi raptada pelo deus do infra-mundo e governante do mundo dos mortos Hades (romano Plutão). Outra versão estabelecia que se tratava de uma punição infligida pela deusa Deméter (romana Ceres) por não terem impedido o rapto da jovem Proserpina sua filha.



Ulisses sendo atraído pelas sirenes, ou mulheres-aves, segundo Pietro Aquila, Monstra maris Siculi frustra dulcedine cantus (entre 1675 e 1690) Biblioteca Nacional Digital

O que é certo é que as línguas nórdicas retiveram a distinção entre as sereias (sirens) originais e as posteriores mutações mitológicas em donzelas do mar (inglês mermaid ou alemão seejungfrau, por ex.), literalmente.

Já para o comum homem medieval, tudo o que viesse à rede com tronco de mulher e cauda de peixe só podia ser sereia, sem penas.


De Aves a Peixes
A entrada das sereias no mundo marinho deve-se a Ulisses, o bravo rei de Ítaca que , na noite dos tempos, teria fundado Lisboa e ainda desnorteado um bando de sirenas a tal ponto que estas, de tão desesperadas, se lançaram no mar.

Este episódio, seguramente o mais célebre da longa vida das sereias, foi amplamente ilustrado na Grécia Antiga, demonstrando o estratagema eficaz com que se anulou o canto funesto das mulheres-aves: Ulisses tapou os ouvidos com cera de mel e fez-se amarrar ao mastro do seu navio  para atravessar a melodia mortal. 

Ulisses e as sereias. Vaso ateniense, séc. V a.C. (The British Museum, Londres)

Com o passar dos séculos e a mudança das mentalidades ocidentais, o mito das sereias evoluiu.

Eminentemente sedutoras, povoaram o recatado imaginário medieval nas páginas de inúmeros manuscritos pacientemente compilados (são mesmo muito sucintamente mencionadas no Nome da Rosa de Umberto Eco, entre os "perigosos" exemplares da sinistra abadia). Provavelmente o mais conhecido  bestiário terá sido o «Liber Monstrorum de Diversis Generibus», do séc. VIII (edição italiana online). Desta obra exaustiva das espécies bizarras, agrupando seres reais e imaginários, destaca-se a sereia.

Embora esporadicamente representada na Antiguidade na sua configuração marinha, a sereia tal como a conhecemos hoje só adquiriu definitivamente a emblemática cauda de peixe na Idade Média.

Sereia com espelho, instrumento de vaidade e da ilusão. Manuscrito inglês, séc. XV. Daqui

A ascensão do Catolicismo ajudou a transformar estas criaturas em fruto proibido, cuja beldade enganadora, símbolo da tentação, constituiu uma apropriada representação do Mal aos olhos da Igreja. As sereias notabilizam-se como derradeira personificação feminina da volúpia e símbolo do pecado.



A viagem de São Brandão, c. 1460, e Konrad von Megenberg, «Buch der Natur», cópia de 1460 sobre o original de meados do séc. XIV (ambas na Biblioteca da Universidade de Heidelberg)

No Antigo Testamento, o profeta Isaías anuncia a dança das sereias nos templos do prazer de Babilónia, após a destruição desta cidade da perdição (Isaías, 13,21).


A dimensão da perdição nas sereias não se perde com o Renascimento. O tratadista milanês Andrea Alciato, pioneiro no género literário dos emblemas morais, incluiu as sereias como símbolos da impudícia e da lascívia (emblema 115 da edição de 1591).

O fascínio cresceu lentamente na Idade Média e conheceu o auge da sua difusão no Renascimento. Na História da Arte europeia, a perigosa beleza cativante destas mulheres aquáticas ganhou expressão notável como ícone da cultura popular medieval - apenas rivalizada pelo dragão.

De facto, “os animais fantásticos mais representados no Românico Português são os dragões e as sereias”.


Jacob Meidenbach, Hortus Sanitatis (1491)


Episódio da Eneida de Virgílio; a deusa Cibele intercede em favor dos troianos cercados em Itália, transformando os seus navios em sereias e assim salvá-los da destruição iminente pelos romanos (edição alemã, 1517)

Abraham Ortelius, Theatrum Orbis Terrarum (1570)



A invenção da imprensa e o desenvolvimento da cartografia permitiram divulgar massivamente as imagens revistas e actualizadas das sereias "modernas".

Na primeira metade do séc. XVI, o naturalista suíço Conrad Gesner e o cirurgião francês Ambroise Paré estiveram entre os primeiros autores de referência.

Fixaram, respectivamente, no Vingt cinquième livre traitant des monstres et prodiges (Paris, 1573; edição online de 1585) e no Historiae Animalium (Zurich, 1551-58), algumas das imagens mais populares destes seres dissimulados.

Assim, as sereias acabaram por se multiplicar, aplicadas a uma imensidade de suportes e recantos arquitecturais, imiscuindo-se e animando uma profusão de espaços, incluindo os insuspeitos templos religiosos.

Um dos exemplos mais surpreendentes encontrou lugar destacado na remota igreja de Saint Senara, em Zennor, na Cornualha. A cadeira é obviamente antiga, mas a lenda da Sereia de Zennor apenas surgiu no saudosista século XIX. Uma bela desconhecida chegou um dia para ouvir - numa curiosa inversão de papéis - um virtuoso cantor do coro da igreja local. Ao fim de algumas visitas dominicais, atraíu-o consigo para o mar. Nunca mais foram vistos. Mas dizem que ainda hoje em Mermaid Cove (Enseada da Sereia), se escutarmos com atenção, podemos ouvir nas noites de Verão o cântico dos amantes por entre o marulhar das ondas.




Cadeira da Sereia de Zennor. Igreja de Saint Senara, Cornualha (foto de Tom Oates)

Dir-se-ia que as sereias encontraram novas casas, numa ironia histórica, em coabitação com os mesmos religiosos que as definiam como obscenas e traiçoeiras.



Cadeiral, c. 1487. Colegiada de Sant'Orso, Aosta (Itália) (daqui)


Igualmente companheiras de guerreiros, ou não fossem elas mesmas temíveis adversárias.


Borguinhota de parada (Filippo Negroli, 1543). Metropolitan Museum, Nova Iorque

No fundo, o proibido sempre atrai. Nestes seres confluem o sagrado e o profano, erudito e popular, o quotidiano e a lenda, numa série de referências históricas ancestrais que não se confinam ao etéreo imaginário. Lá que elas existiam existiam, pois... 

Tanto assim foi que algumas representantes desta espécie exótica ganharam dimensão eterna. Pelos emarados caminhos míticos do Velho Mundo, dois espécimens de importância singular sobressaíram como protectoras dos humanos.

Brasão da cidade de Varsóvia, ostentando a sua protectora marinha
A sereia-guerreira nórdica, símbolo heráldico da cidade de Varsóvia - a Warszawska Syrenka -, vinda das profundezas do Mar Báltico (acompanhada pela sua irmã que decidiu acomodar-se no famoso rochedo dinamarquês onde ainda hoje a podemos contemplar), e a bizarra lenda trágico-amorosa de Mélusine, a fada-sereia fundadora e protectora da ilustre Casa de Lusignan, no Poitou (centro-Oeste da França), conciliando diversos elementos, a Água enquanto sereia, a Terra, enquanto serpente e o Ar enquanto ave, compondo um medonho animal compósito. Mélusine sofre por amor, após o seu marido ter descoberto a sua natureza insuspeita.

Desde então vagueia sob a forma de criatura fantástica, regressando apenas de noite para amamentar os seus filhos e sobrevoa o castelo de Lusignan nas vésperas de acontecimentos importantes. A lenda, fértil em leituras subliminares, tal como as sereias, depressa ultrapassou fronteiras e rapidamente se adaptou a outras línguas através da Europa.

A fada-sereia Mélusine, uma das lendas mais bem sucedidas da França medieval, da autoria de Jean d'Arras (1393).
 Condenada a manter em segredo dos humanos a maldição da sua metamorfose em ser alado com cauda de peixe, até ao fim da sua vida.  


Brasão dos senhores do castelo de Ainay-le-Vieil, ladeado por duas sereias, evocando a lenda de Mélusine, séc. XVI.
 Pormenor da lareira do castelo, no vale do Loire


Baixo-relevo nas ruínas do castelo de Lusignan, Poitou

A improvável ligação entre a linhagem Lusignan e a Starbucks ocorreu em 1971, quando a empresa multinacional de cafés norte-americana adoptou o famoso símbolo da sereia renascentista, progressivamente estilizado.




Entre nós, nação bastante marítima, surgem retratadas numa imensidade de suportes surpreendente. Não foi o caso, porém, da literatura. Apenas Camões (Canto X, estâncias 5 e 48) alude à "voz angélica das sirenas", cujo canto deveria louvar então os feitos marítimos dos portugueses.

Letra "s" na Grammatica da Lingua Portuguesa de João de Barros (1540)

Tanto quanto sabemos, os portugueses não embarcaram nessas histórias. Estarim provavelmente demasiado entretidos com outras arrebatadoras realidades exóticas que desfilaram perante os seus olhos desde a Guiné ao Brasil, à Índia e ao sudeste asiático, até alturas do Japão.

Não faltam porém, diversos exemplos evocativos das misteriosas sereias.

Lá estão entre os dispersos frescos zoomórficos das casas pintadas, em Évora (actualmente sede da Fundação Eugénio de Almeida), da primeira metade de Quinhentos.
Frescos das Casas pintadas, Évora, primeira metade de Quinhentos (actual sede da Fundação Eugénio de Almeida)

No Palácio Nacional de Sintra, emprestam o nome à Sala das Sereias, ou da Galé, representadas nos paineis de madeira que decoram o tecto da antiga  residência régia de Verão.

Sala das Sereias, ou da Galé, final do séc. XVII (Palácio Nacional de Sintra)

Mas também nos templos religiosos, ocupam lugares destacados nos cadeirais onde se amparavam os monges, no ornamento de altares, capitéis e portais de igrejas e conventos.

Aqui insistem em figurar, por exemplo, num capitel da Igreja de Nossa Senhora da Assunção, em Elvas, erguendo a cruz de Cristo,...


...às mais enobrecidas que suportam a esfera armilar e o escudo de Portugal, símbolos régios, numa das mísulas do Convento de Cristo.


Também as famílias mais abastadas, como os Portocarrero, no Porto, as colocaram em evidência como monumentais guardiãs no portal do Palácio das Sereias, palacete dos meados do séc. XVIII.

Daqui
Mais a norte, no Distrito de Bragança, as sereias figuram desde Setecentos na Fonte com o seu nome.

Fonte das Sereias, em Carrazeda de Ansiães, séc. XVIII

As lendárias criaturas aquáticas não poderiam estar muito afastadas do seu elemento. Protegidas no interior da igreja, ganham relevo adicional numa cidade marítima como Vila do Conde. Como que a redimir-se da sua natureza maléfica, surgem associadas desta vez à água benta.
Pia baptismal, Igreja Matriz de Póvoa de Varzim, meados do séc. XVIII
Atravessando o Atlântico, instalaram-se desde 1779 como ornamento nos altares da capela do Santíssimo Sacramento, figurando no conjunto monumental do Convento de Santo Antonio e da Igreja de São Francisco em João Pessoa, capital da Paraíba, cidade desenvolvida entre o rio e o mar .
Sereia oitocentista nos altares da Igreja de São Francisco, em João Pessoa, Paraíba (foto Leonardo de Oliveira)
Encontros imediatos aquáticos

Das mais variadas latitudes surgiram relatos de encontros imediatos com as sereias. Alguns deixaram - insistiam os seus autores - testemunhos inequívocos da sua existência. As terras e mares distantes revelavam aos poucos os seus habitantes mais originais aos exploradores. 

Gravura de Theodor de Bry (1628)
(Centre for Newfoundland Studies - Universidade de Newfoundland, Terra Nova, Canadá)

No prefácio ao relato do navegador Richard WhitbourneA Discourse and Discovery of New-Found-Land (1620), dá conta de um encontro em 1610 no porto de São João da Terra Nova, futuro Canadá. 

Louis Renard, «Poissons, Ecrevisses et Crabes» (1718) (Universidade de Glasgow)
Em 1718, o francês Louis Renard publicou em Amsterdam uma colecção ilustrada de desenhos científicos intitulada Poissons, Ecrevisses et Crabes: de diverses couleurs et figures extraordinaires, que l'on trouve autour des Isles Moluques, et sur les côtes des Terres Australes, onde incluiu um exemplar de sereia, capturada próximo de Amboino, no arquipélago das Molucas (actual Indonésia) que sobreviveu quatro dias e sete horas numa bacia com água. O testemunho foi obtido, juntamente com desenhos originais entre 1705 e 1715, de funcionários da Companhia das Índias Orientais holandesa.

Sereia nipónica, 1805. Waseda University Theatre Museum (Tóquio)

Décadas mais tarde, em 1805, e mais a Oriente, uma outra sereia, foi alegadamente recolhida na Baía de Toyama. Bem menos atraente, de acordo com o texto, tal criatura mediria 10,6 metros.

Se a imaginação humana não conhece limites, as sereias foram um constante desafio. Afinal, "os bichos também se inventam, de acordo com os sonhos mais caros”, dizia a Lhama Bailarina na  curiosa Zoologia Bizarra do poeta carioca Ferreira Gullar (Prémio Camões 2010).

Desenganem-se os que crêem que as sereias levam vida fácil. Para chegarem até hoje, terão sobrevivido a oligarquias, monarquias, repúblicas, às grandes revoluções e às guerras mundiais.

Contra todas as probabilidades, atormentadas pelos deuses antigos, superadas por Orfeu e Ulisses, depois condenadas pela moral cristã, ultrapassadas e dissecadas pela ciência das Luzes, as sereias sobreviveram. Não consta que algum especialista se tenha debruçado sobre os efeitos das alterações climácticas  ou das marés negras nestes seres delicados. A prova do seu sucesso: incorporam as suas histórias no mundo actual, principalmente na arte.
"Sereia" como atracção de feira de bizarrias japonesa, séc. XIX (daqui)

Os séculos XVIII e XIX são já pouco dignos para com as criaturas marinhas. O espectáculo das feiras ambulantes de bizarrias no Japão (misemono), com digressões pelos Estados Unidos e na Europa em respectivos freak shows, eram habitualmente protagonizados por sereias, supostamente originárias do Japão e das Índias Orientais.  De um dia para o outro, multiplicaram-se os "achados" de "sereias" por pescadores nipónicos. Alguns exemplares mais evoluídos possuíam, pois claro, o dom da fala.

Apesar da sua malícia, ou precisamente devido a ela, não deixaram de ser apreciadas ao longo da História. Porém, chegado o século XIX, a época Romântica deu uma contribuição decisiva na transformação das sereias em criaturas adoráveis. Continuaram a fascinar os mortais, cada vez mais jovens e já sem malícia.


Ilustração de Edmund Dulac (edição inglesa dos Contos de Andersen de 1911)


Mermaid, John William Waterhouse (1900) (Royal Academy of Arts, Londres)

Den lille havfrue (a Pequena Sereia), de Andersen, por Edvard Eriksen, 1913 (Copenhaga)

Disney Animation Studios (1989, relançado em 1997)

O século XX viu nelas uma potencial fonte de receitas muito apreciável e assim se conciliou o útil com o agradável. Até surgir o momento da "verdade". É que o canto das sereias terá terminado recentemente.

O silêncio das sereias?



Tudo isto para colocar a questão transcendental: para onde foram as sereias? e porque nao ouvimos o canto delas?

Será que a moderna sociedade de ruídos e bombardeamentos audiovisuais abafou as celebradas criaturas misteriosas que outrora prosperavam nas imaginações enamoradas dos marinheiros e nas páginas de entusiásticos contadores de histórias, numa tradição milenar que remonta a Platão e que tentaram arrastar Ulisses, intrépido navegador e lendário fundador de Lisboa, para a sua perdição?

A questão secular ressurgiu em Maio passado, no país do costume. O canal Animal Planet, da Discovery Channel, apresentou "Mermaids: The Body Found", um documentário acerca da existência de sereias, carregado de efeitos especiais que se propõe retratar "um retrato bastante convincente da existência das sereias, da sua provável aparência e porque permanecem escondidas", nas suas próprias palavras. Em letrinhas minúsculas, adverte-se vaga e confusamente que o programa partiu de acontecimentos reais e de "teorias científicas". 

Este entusiasmo e as belas imagens geradas por computador foram o suficiente para criar a polémica. Conjecturando acerca de um hipotético estágio evolutivo apelidado de "símio aquático", as expectativas das mentes mais susceptíveis pareciam ter aqui o substrato de que necessitavam. Não terá sido grande ideia, dado que quase metade dos norte-americanos negam a Teoria da Evolução. Enquanto uns continuam a defender convictamente a existência de sereias, outros foram mais longe e apontaram provas arqueológicas do temível cefalópode gigante Kraken (que afinal não passam de vértebras de ictiossauro), equívoco prontamente desfeito pela National Geographic Society. 

A comunidade científica não tardou em questionar a "ciência" do documentário. As discussões incendiaram a internet e prosseguiram o tempo suficiente até perderem a novidade. Mas, perante a enxurrada de emails de cidadãos crédulos com que foi assediada, a própria administração oceanográfica norte-americana, NOAA (a NASA dos mares) viu-se forçada a emitir esta inédita, mas algo óbvia, declaração oficial à população: lamentamos, mas jamais foram encontradas evidências de humanóides aquáticos.
 

Resta o consolo de  vestir uma cauda de peixe, como a nadadora e modelo australiana Hannah Fraser, que, inspirada pelo filme Splash, mergulha nos mares para nadar com baleias, golfinhos e tubarões em defesa do oceano e dos ambientes marinhos.

Claro se torna ser impossível apagar estas Atlântidas literárias.  Nem as maiores montanhas de água, nos vastos e ainda muito pouco conhecidos oceanos, conseguem diluir o imaginário ancestral.


Mesmo submersas e silenciosas, as sereias permanecerão para sempre inspiradoras.

Para ver melhor:
A não perder, esta magnífica galeria fotográfica de sereias provenientes de monumentos e templos de toda a Europa.

Outra galeria de sereias em desenhos e iluminuras.

Ainda insatisfeitos? outra extraordinária compilação de sereias medievais.


Para saber mais:

Mitologia grega

Sereias gregas (no sítio do costume)

Sereias tal como as "conhecemos" (idem)